Só resta confiar na mídia e órgãos estrangeiros para garantir eleição limpa, diz candidato de Evo

Luis Arce diz que processo eleitoral na Bolívia 'já está comprometido'

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Buenos Aires

Candidato do MAS, Movimento ao Socialismo, partido de Evo Morales, à Presidência da Bolívia, Luis Arce, 56, desce do táxi no centro de Buenos Aires e é logo rodeado por compatriotas.

Tira algumas selfies, sorri e entra em uma das centrais sindicais que estão dando apoio ao ex-presidente, que vive refugiado na Argentina.

Aos gritos de "vamos Lucho" (como é conhecido) e "contigo voltaremos", Arce acena timidamente e sobe as escadas do edifício.

O candidato do MAS à Presidência da Bolívia, Luis Arce, participa de encontro com Evo Morales em Buenos Aires
O candidato do MAS à Presidência da Bolívia, Luis Arce, participa de encontro com Evo Morales em Buenos Aires - Agustin Marcarian - 17.fev.2020/Reuters

Ele se reuniu na tarde desta terça-feira (18) com Evo, que tinha acabado de voltar de uma viagem a Cuba para realizar exames médicos. Depois, tinha um encontro marcado com o presidente argentino, Alberto Fernández.

Na quarta-feira, ele deve voltar para a Bolívia, onde está em campanha eleitoral. Sua candidatura, no entanto, será decidida nos próximos dias pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que analisa diversos pedidos de impugnação. As demandas questionam a postulação de Arce e do próprio Evo, que deve concorrer a uma vaga no Senado.

Antes disso, Arce afirmou à Folha que desconfia se o processo eleitoral boliviano, marcado para o dia 3 de maio, será completamente justo. 

A primeira pesquisa da nova eleição, já com os candidatos inscritos, dá ao senhor a liderança (31,6%), com Carlos Mesa em segundo lugar (17,2%) e Jeanine Añez (16,5%) na sequência. O senhor crê que sua vantagem pode gerar mais constrangimentos do atual regime à sua candidatura? Os constrangimentos já estão ocorrendo. Logo que voltei de Buenos Aires depois de ser escolhido como candidato, já no aeroporto na Bolívia, antes mesmo de passar pelo setor de migrações, ou seja, sem nem oficialmente ter entrado no país, um policial me entregou uma intimação para que eu comparecesse à Justiça no dia seguinte.

Esse caso tem a ver com o escândalo do desvio de verbas do Fundo Indígena, correto? Qual é a acusação? Nem eu sei. Sim, tem a ver com o Fundo Indígena. Mas, quando compareci, no dia seguinte, como fui intimado, perguntei de que era acusado, e a promotora me entregou um arquivo enorme para ser analisado. Isso está com minha defesa agora, e estamos pedindo uma prorrogação de prazo para uma resposta, porque a documentação é enorme. 

Só sei que eu sou inocente, não tenho nada a ver com esse caso. Tanto que fui acompanhado por um grupo das Nações Unidas, que crê, como eu, que essa é uma perseguição política.

Há outros empecilhos a sua candidatura? O novo Tribunal Constitucional, que foi escolhido por esse governo "de facto", anda observando tudo com relação à minha candidatura. Por exemplo, há um requisito de que, para ser candidato, a pessoa esteja residindo na Bolívia há ao menos cinco anos. Pediram para eu provar isso. E é ridículo, porque sou professor universitário de várias instituições na Bolívia desde 1991. Recebo salário, tenho domicílio e tenho que ficar provando tudo isso. Fazem essas coisas para me amedrontar, para me constranger, mas é preciso enfrentá-las com tranquilidade.

O MAS diz que ganhou as eleições de outubro, e as primeiras pesquisas desta nova eleição dão vantagem para a sua candidatura. O senhor acha que essas eleições serão limpas? Só nos resta confiar em vocês, nos meios de comunicação internacionais, e nos organismos e observadores estrangeiros. Nós estamos seguros da força que temos no país. O MAS continua sendo a primeira força política na Bolívia, ainda que isso agrade ou não a muita gente.

Por outro lado, penso que esse processo eleitoral já está comprometido. Se foi Añez quem nomeou o presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, e agora ela é candidata, o que posso esperar? Além do presidente do tribunal, ela também escolheu vários membros que são amigos de outros integrantes da direita boliviana, como os ex-presidentes Carlos Mesa e Jorge Quiroga. Então, quem nos assegura que isso vai sair bem?

Eu não tenho nenhuma garantia, mas insisto que não se pode desistir, e que devemos pedir que a comunidade internacional nos acompanhe. 

Em entrevista recente à Folha, Jeanine Añez disse que as regras eleitorais não vão mudar e serão respeitadas. Se esses que estão no poder hoje vão manter o mesmo sistema que nós usávamos e que eles diziam que estava mal, que era tendencioso, e encheram o tribunal com gente deles, quem pode garantir que essa eleição vá ser limpa?

E há um agravante. Como houve discrepâncias entre o resultado da contagem rápida e o da contagem oficial em outubro, esse tribunal atual eliminou a contagem rápida [que sairia na mesma noite] e diz que só divulgará o resultado dez dias depois. Dez dias! Isso dá tempo para manipular qualquer resultado.

Se o senhor vencer a eleição, qual será sua prioridade, principalmente no setor econômico, que está muito impactado? Para nós, é muito triste ver o que está acontecendo. Esse governo "de facto", em apenas três meses, destruiu o modelo de sucesso que nós construímos. 

Quando saímos do poder, deixamos uma economia forte, com a taxa de crescimento sustentado mais alta da América do Sul [4%, em média, em toda a gestão de Evo Morales], com estabilidade de preços, bom estoque de reservas internacionais e déficit fiscal controlado. 

Hoje tudo está destruído. O que vemos é um grupo enchendo as estatais de parentes e amigos para repartir o que há. Um nepotismo cínico e vingativo.

Por que isso não está sendo denunciado? Porque os meios de comunicação estão controlados. Se chega a sair uma denúncia, ela é logo abafada. Há muita pressão sobre a mídia.

Durante sua gestão como ministro, a Bolívia cresceu, como o senhor afirmou, mas parte desse sucesso se deve ao "boom das commodities"... Não, isso é falso. O "boom das commodities" ajudou muitos países da América do Sul a ter um crescimento, mas nenhum teve um crescimento tão sustentado como o da Bolívia. 

O segredo do nosso sucesso nunca foram apenas as "commodities", mas sim nosso modelo econômico, que não foi colocado em prática em nenhum país. Se eu for eleito, vamos retomar esse modelo. E meu cálculo é que, em dois anos, vamos retomar as taxas de crescimento de antes. 

Como seria essa retomada? Incentivando exportações a outros países —já estávamos vendendo carne e vinho para a China e para a Rússia. Também tínhamos iniciado uma política de industrialização com substituição de importações. 

Isso estava planejado, mas o golpe nos impediu de continuar. Além disso, íamos trazer investidores fortes para a área do lítio, tínhamos contrato a fechar com empresas alemãs, e esse governo parou isso também. Estão loteando o país e levando-o de volta ao passado.

No nosso modelo há lugar para a empresa privada, mas sobretudo, damos oportunidade ao cidadão boliviano de melhorar sua qualidade de vida, e isso deixou de ser feito.

Como o senhor vê que poderia ser a relação com o Brasil, que foi o primeiro país a reconhecer Añez como presidente interina? A Bolívia é um país que tem alto espírito integrador, por isso vamos participar de todos os processos de integração que existem na região, entre eles o Mercosul, no qual já estamos em um processo de entrada como membro pleno e temos interesse nisso.

O que me preocupa com relação ao Brasil é que estão fechando acordos de preço e de volume de gás com esse governo ilegítimo de Añez. O que eu esperava do Brasil é que o governo esperasse que um novo presidente, eleito pelas urnas, chegasse ao poder, para então negociar esses contratos.

As diferenças ideológicas entre o presidente Jair Bolsonaro e o MAS o preocupam? Está claro que há diferenças, e quando há diferenças é mais complicado avançar nos negócios. Mas isso não é e nem deve ser um empecilho. Tanto o governo do Brasil quanto o da Bolívia têm de pensar no que é melhor para cada um de seus povos. E, se pensarmos dessa forma, podemos chegar a bons acordos com o Brasil, ainda que discordemos ideologicamente deste governo.

É claro que é muito mais fácil fazer essas negociações quando temos ideologia em comum, algo que ocorre com a Argentina, mas não será impossível ter uma boa relação com o Brasil também.

Añez reconheceu Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela. Como agiria um novo governo do MAS? Está claro o que vamos fazer. Obviamente, vamos retomar nossa política externa de antes. E, nessa política, o senhor Guaidó não existe. Quem é o senhor Guaidó? Não. Nossa relação com a Venezuela vai voltar a ser como era como quando Evo Morales era presidente.

O senhor andou se tratando por um longo período no Brasil. Está bem de saúde? Sim. Os brasileiros fizeram bom trabalho comigo [risos]. Sigo fazendo os controles e exames que são necessários, os últimos foram em dezembro, e seguirei fazendo. Sou sempre muito bem atendido no hospital Sírio-Libanês. Aliás, é uma ideia que tenho, fazer uma réplica do Sírio-Libanês acessível aos bolivianos. 


Eleições na Bolívia

20 out: eleições gerais, denunciadas como fraudulentas pela OEA, dão vitória a Evo Morales
10 nov: pressionado pelo Exército, Evo Morales renuncia
12 nov: senadora Jeanine Añez se declara presidente interina
3 jan: TSE boliviano anuncia novas eleições para 3 de maio
24 jan: Añez diz que vai concorrer no pleito

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