Descrição de chapéu
The New York Times Eleições EUA 2020

Apoio a Sanders sugere que os democratas cansaram de ser 'otários'?

Candidato é conhecido por postura intransigente, ao contrário de Biden, que é flexível

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

Segundo a firma de pesquisas Gallup, cerca de 47% dos adultos americanos se identificam como democratas ou com inclinação a democratas, o que significa aproximadamente 10 milhões a mais de apoiadores que o Partido Republicano.

Cientistas políticos classificam o ambiente nacional como o mais liberal desde o início dos anos 1960.

No entanto, apesar da premissa da democracia majoritária de que o sentimento público favorável deveria se traduzir em vantagem política, os democratas progressistas não conseguem o que querem na política nacional —nem chegam perto disso.

O senador e pré-candidato democrata Bernie Sanders, durante entrevista coletiva em Burlington, Vermont - Caitlin Ochs - 4.mar.2020/Reuters

Na verdade, muitas vezes eles obtêm o oposto do que querem e depois são eliminados nas eleições.

Em questões como controle de armas, assistência médica, tributação, imigração, ajuda aos pobres e muitas outras, os democratas perderam frequentemente, mesmo quando conseguiram o controle das duas casas do Congresso e a Presidência.

Há muitas razões conhecidas para tanto, incluindo o estranho poder legislativo dos interesses corporativos e uma Constituição que favorece as áreas rurais acima das cidades.

Mas parte disso deriva do fato de os democratas terem uma disposição excessiva a aceitar compromissos ou barganhas de boa fé? Sim, pelo menos segundo sugerem novas pesquisas empíricas: os liberais tendem a ser otários.

Compreender essa "otarice" e o desejo emergente dos progressistas de evitá-la pode ser uma chave para entender as primárias de 2020 e o surgimento de figuras inflexíveis como Bernie Sanders.

Sanders talvez seja incapaz de trabalhar com os outros, como dizem seus críticos. Mas, para os democratas progressistas cansados de perder há décadas, esse é realmente o maior atrativo dele.

Três professores —Kristen Underhill, Ian Aryes e Pranav Bhandarkar— estudaram os compromissos legislativos analisando os chamados "pores do sol", ou seja, acordos para fazer uma lei perder a vigência após certo número de anos.

Concordar com algo que você não gosta, desde que seja por um tempo limitado, é uma maneira de ter a mente aberta e permitir que uma lei da qual se discorda seja experimentada durante algum tempo.

A descoberta mais notável dos estudiosos é que os autodenominados liberais se mostraram mais dispostos a permitir que prioridades conservadoras sejam implementadas, desde que haja um pôr do sol.

Por outro lado, os conservadores tendem a simplesmente rejeitar as propostas liberais, não importa quais.

Assim, os autores conseguiram quantificar a "otarice" liberal, concluindo que "as cláusulas de pôr do sol tendem a induzir uma gama mais ampla de ideias de compromisso e significativamente mais apoio a acordos sobre legislação conservadora, em comparação com a legislação liberal".

Os professores estavam realizando um experimento, mas os últimos 20 anos de política estão cheios de exemplos reais.

As partes mais desagradáveis da Lei Patriota foram aprovadas com um pôr do sol, assim como o estatuto de advogado independente que prendeu o presidente Bill Clinton, sem mencionar os cortes de impostos para os ricos sob os presidentes George W. Bush e Trump (que tinham prazos limitados que desinflavam artificialmente seus custos reais).

Por outro lado, muitas prioridades democratas foram totalmente rejeitadas, até os esforços mais brandos: os modestos projetos de lei sobre controle de armas e mudanças climáticas do governo Obama, a nomeação do juiz federal moderado Merrick Garland para a Suprema Corte e a opção pública no centro do pacote original de reforma dos serviços de saúde de Barack Obama —todos falharam.

É o caso de seguir uma ética admirável no bairro errado. Para muitos liberais tradicionais, o respeito pela diferença é entendido como um dever sagrado.

Considere, por exemplo, as calorosas palavras de Joe Biden a seus colegas republicanos ou dos muitos peões da esquerda às virtudes da empatia.

Por que demonizar seus adversários em vez de presumir que, como seres humanos, o que eles querem merece respeito e a dignidade de uma avaliação justa?

Esse pluralismo tolerante tem uma longa e distinta linhagem, desde escritos de figuras como James Madison e John Locke até o ideal cristão maior de amar seus inimigos —coisas ótimas, de mentalidade elevada.

Muitos líderes republicanos destacados também adotaram esses valores, como o senador John McCain, falecido há pouco, e o presidente George H. W. Bush.

Mas, como postura para negociação, a mentalidade aberta unilateral é um desastre. Ao se enfrentar um oponente intransigente, ela produz um resultado previsível: ser derrubado repetidamente.

O Partido Republicano não é mais, sob risco de eufemismo, o partido de George W. Bush ou de McCain.

Ele tem pouca utilidade para a tradição pluralista representada pelos fundadores e, em vez disso, passou a celebrar e até glorificar o não acordo por meio das políticas de Donald Trump e Mitch McConnell.

Nesse contexto, a intuição de que os democratas fazem o jogo do otário há muito tempo pode ser o que está fazendo que os eleitores democratas, especialmente os mais jovens, prefiram candidaturas que aprovam a política maquiavélica e que não têm medo de denunciar vilões.

É uma dinâmica que explica de onde vem o apoio aos senadores Elizabeth Warren e Bernie Sanders e por que Biden —que inicia as negociações tentando ser razoável, enquanto espera o mesmo dos outros— parece um homem de outro tempo.

Certamente explica por que a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, possivelmente o futuro do Partido Democrata, sugeriu em um perfil na revista New York que o que ela mais admira em Sanders é sua disposição ao longo dos anos de ser o único voto a favor (ou contra) coisas que ele considera profundamente importantes.

Isso pode até ajudar a explicar o entusiasmo pelos gastos de campanha desavergonhadamente excessivos e a presença tumultuosa de Mike Bloomberg nas redes sociais: ele talvez não seja um social-democrata inflexível, mas não é o que alguém chamaria de otário.

Se os democratas escolherem um candidato totalmente intransigente em 2020, isso provavelmente refletirá o cansaço de interpretar o cara ou a garota legal; o desgaste de defender unilateralmente as normas gentis do Iluminismo e de ser enrolado no processo.

Nesse sentido, as primárias democratas podem lembrar uma cena do filme "História de um Casamento", de 2019: em meio a um divórcio cada vez mais hostil, o marido demite seu advogado razoável e atencioso, interpretado por Alan Alda, e o substitui por um agressivo e impetuoso, papel de Ray Liotta (do famoso "Os Bons Companheiros").

"Por que você o demitiu?", pergunta a mulher. Ele precisava de alguém muito menos cordato, diz o marido —empregando um termo muito mais vulgar do que permite esta reflexão educada sobre a "otarice".

Tim Wu é professor de direito na Universidade Columbia. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.