Diário de confinamento em Barcelona: 'O lado utópico da crise'

E se, depois que tudo passar, seguíssemos solidários?

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Barcelona

Dia #8 – Sábado, 21 de março. Cena: guitarra vermelha que eu chamo de Frida, restos de chá, patacones.

Essa noite, insônia profunda, eu fiz uma música.

Ah, sim, creio que não me apresentei: além de jornalista pernambucano-paulistana encaixotada em um apartamento no centro de Barcelona, também sou cantora, canária, socadora de instrumentos... e componho umas cousas.

Nada como um confinamento compulsório para lubrificar os paranauês criativos de um artista ou, na realidade, de qualquer pessoa respirante expressante expectante pensante.

Rua deserta em Barcelona - Joan Gosa - 18.mar.2020/Xinhua

A música se chama "I never begged you to be here with me" (algo como “Eu nunca implorei para que você estivesse aqui comigo”), assim, título grande bocudo mesmo, e eu tenho medo que meu namorado pense que é com ele, já que não nos vemos há mais de uma semana por conta do confinamento domiciliar preventivo (ele mora fora de Barcelona). Ela é a segunda de uma série que eu intitulei, provisória e não muito originalmente, "Músicas para uma quarentena", de um neoprojeto solo meu em gestação chamado King Lola.

(Meu companheiro de apartamento acaba de entrar no escritório com uma bandeja de patacones quentinhos. Patacones, eu não sabia, são bananas-macho fritas em rodelas com um molho de abacate. Com o confinamento, temos experimentado receitas e compartilhado comida).

Um quadrinho que está circulando --e que já vi traduzido em umas quantas línguas, tal é a universalidade viral-- diz que depois que tudo isso passar nós vamos sair do cativeiro obesos, divorciados, grávidos, loucos.

Eu acrescentaria uma linha, embora não seja engraçadinha: fraternos.

Os sintomas utópicos já estão em toda parte: amigos de diferentes países me comentam sentir mais simpatia por gente ao seu redor, inclusive às vezes buscando resolver diferenças; atitudes voluntárias massivas aqui na Espanha reforçam vínculos comunitários, presenciais ou virtuais; e eu mesma tô compartilhando aqui em casa altos papos, sol na varanda e provisões.

Superficial ou não, a sensação de estamos-todos-juntos-nessa cria nuvens fofas ao redor. E isso amansa feras, suspende conflitos. No imaginário coletivo, gente comum ganha status de celebridade, e celebridades ganham status de gente comum: assim, todos de pijama na sala de casa fazendo lives do Instagram, vamos horizontalizando, temporariamente, algumas relações tipicamente, eu diria, estamentais.

Na TV espanhola, como em outras partes do mundo, apresentadores já transmitem seus programas de variedade de casa, da banheira, do sofá, com o gato passando, o filho gritando no fundo. Do outro lado do espectro, músicos e outros artistas anônimos ganham fama virtual ao se apresentar em suas varandas, trazendo vizinhos às janelas, convocando um canto uníssono. Com apenas uma semana de confinamento domiciliar na Espanha, já abundam vídeos de gente cantando em coro das janelas, a reverberação das vozes preenchendo o vazio das ruas com seu eco circular e phopho.

Claro, antes que vocês venham me jogar água fria ou atirar uma flecha sioux: sim, estamos falando de uma visão idílica parcial e reduzida, que não se encaixa com a realidade da maioria e, de novo, é acolchoada pelas tais nuvens phophas. Mas, dentro dessa bolha na qual eu-e-tu flutuamos, lendo e escrevendo colunas de jornal e tentando agir certo em tempos de crise, ambos podemos erguer os olhos um para @ outr@ e, sem saber nossos nomes, dizer, empaticamente: eu entendo. Espero que esteja bem. Eu também comprei papel higiênico demais. Cuide-se.

E, se preparar patacones em casa, ofereça-os a quem ama.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.


Leia a parte 1 do diário de confinamento em Barcelona: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'

Leia a parte 2 do diário de confinamento em Barcelona: 'Teste, só para pacientes internados'

Leia a parte 3 do diário de confinamento em Barcelona: 'A vida vista de cima'

Leia a parte 4 do diário de confinamento em Barcelona: 'Panelaço contra o rei'

Leia a parte 5 do diário de confinamento em Barcelona: 'O perigo mora em casa'

Leia a parte 6 do diário de confinamento em Barcelona: 'Solidariedade em tempos de vírus'

Leia a parte 8 do diário de confinamento em Barcelona: 'O canto dos pássaros urbanos'

Leia a parte 9 do diário de confinamento em Barcelona: 'Os de baixo ficam sem banquete'

Leia a parte 10 do diário de confinamento em Barcelona: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'

Leia a parte 11 do diário de confinamento em Barcelona: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'

Leia a parte 12 do diário de confinamento em Barcelona: 'Tensão cresce em diferentes setores'

Leia a parte 13 do diário de confinamento em Barcelona: 'Único tratamento agora é a disciplina'

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