Diplomata vê mundo com maior risco de conflito nuclear

Tratado para evitar proliferação de armas atômicas faz 50 anos e ainda é relevante, avalia autoridade no tema

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São Paulo

O mundo hoje corre mais riscos de ver um conflito atômico do que há 50 anos, quando entrou em vigor o TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear), principal instrumento multilateral para evitar a propagação desse tipo de armamento.

A avaliação é do embaixador Sérgio Duarte, 85, uma das maiores autoridades mundiais no tema. Ele foi o presidente da sétima revisão quinquenal do TNP, em 2005, e de 2007 até sua aposentadoria, em 2012, foi o alto representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.

“Não há dúvida de que nos tempos de hoje o mundo é mais perigoso do que em qualquer época desde o início da era nuclear”, disse Duarte por email de Belo Horizonte, de onde preside a ONG internacional Conferências Pugwash, receptora do Nobel da Paz de 1995 por seus esforços em prol do desarmamento nuclear.

O diplomata Sérgio Duarte
O diplomata Sérgio Duarte - Rick Bajornas - 1º.set.11/ONU

Em abril, o TNP passará por mais uma revisão, se a epidemia do novo coronavírus não adiar a reunião.

Nesta quinta (5), o tratado completou meio século sob pressão e escrutínio acerca de sua utilidade.

Só em 2019, os EUA deixaram um dos principais acordos de limitação de forças nucleares do fim da Guerra Fria com a Rússia, o governo Donald Trump determinou a fabricação de bombas atômicas menos potentes e mais empregáveis, a Coreia do Norte permaneceu indomada e o arranjo que visava manter o Irã desnuclearizado desintegrou.

Para piorar, 2020 é o prazo para que as duas potências majoritárias, EUA e Rússia, decidam pela extensão do principal tratado de limitação de arsenais global, o Novo Start, que vence em 2021.

“Todos os nove possuidores de armas nucleares, sem exceção, vêm aumentando seus arsenais ou acrescentando novas tecnologias destruidoras, como mísseis várias vezes mais velozes que o som, uso de técnicas cibernéticas, lasers, inteligência artificial e outras inovações, numa verdadeira proliferação tecnológica”, afirmou o diplomata.

Americanos e russos têm 92% das ogivas do mundo, respectivamente 1.750 e 1.650 prontas para uso. Isso fora um estoque de 8.130 bombas operacionais em estoque.

Ainda possuem armas nucleares os rivais Índia e Paquistão, China, França, Reino Unido, Coreia do Norte e Israel —que faz disso um segredo de polichinelo útil no xadrez do Oriente Médio.

Para o embaixador, apesar disso o TNP segue relevante. “Ele foi eficaz para ajudar a evitar que um número maior de países viesse a obter armamento atômico e favorece a cooperação para o uso pacífico da energia nuclear”, diz.

A questão é que o acordo sempre foi vago no quesito desarmamento. “A única cláusula não produziu resultados satisfatórios, ao contrário, os países nucleares vêm aperfeiçoando seu poder.”

Isso se reflete na rejeição ao TPAN (Tratado de Proibição de Armas Nucleares), de 2017, que não está em vigor porque as potências atômicas e as candidatas a serem uma não o ratificam pelo óbvio motivo enunciado por sua sigla.

As dificuldades nesse campo são inerentes, e não apenas por parte dos detentores da bomba.

O Brasil, por exemplo, é um país considerado exemplar em questões de desarmamento. Foi pioneiro em um regime de confiança mútua instaurado com a antiga rival Argentina, em 1991, e é signatário do TNP e do TPAN.

Mesmo assim, o país se recusa a assinar o Protocolo Adicional ao TNP, de 1997, que prevê um regime de inspeções internacionais bem mais amplo, o que na visão brasileira exporia segredos industriais do processamento de urânio e não seria justo sem que as potências nucleares permitissem o mesmo e abandonassem suas armas.

A mentalidade no país é muito influenciada pela visão militar, dado que o programa nuclear é de responsabilidade da Marinha desde 1979. Se a bomba é vedada pela Constituição, seu poder dissuasório é parte de qualquer conversa sobre o tema neste meio.

Os EUA de tempos em tempos enviam diplomatas para tentar convencer o Brasil a assinar o protocolo, mas não tiveram sucesso até aqui nem mesmo sob a gestão americanófila de Jair Bolsonaro.

“Nenhum instrumento no campo da não proliferação nuclear até hoje logrou adesão universal”, diz Duarte.

Ele lembra as dificuldades que enfrentou durante a revisão de 2005. “Não houve acordo sobre um documento final devido às profundas divergências e à rivalidade, desconfiança e hostilidade entre EUA e Rússia. O clima internacional atual, sobretudo entre os dois grandes possuidores de armas, é semelhante ao daquela época”, afirma.

Assim, ele se diz cético acerca de avanços significativos conquistados durante a revisão do TNP em abril. “O mínimo que se pode dizer é que a perspectiva de um resultado positivo é altamente problemática.”

O TNP foi assinado em 1968 e hoje tem 191 aderentes —não o assinaram Índia, Paquistão, Israel e Sudão do Sul, enquanto a Coreia do Norte o abandonou.

Sua origem remonta, claro, às explosões das bombas atômicas americanas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, que puseram fim à Segunda Guerra Mundial e deram início à era nuclear.

Em meados dos anos 1960, a relação entre as potências que emergiram do conflito, EUA e União Soviética, estava péssima. O presidente americano à época, Lyndon Johnson, acelerou o envolvimento de seu país na guerra contra comunistas no Vietnã.

Para o historiador Jonathan Hunt, da universidade britânica de Southampton, Johnson estimulou as negociações do acordo visando dar um verniz pacifista à sua gestão.

Já Moscou quis usar o texto para consolidar seus ganhos de influência no Leste Europeu e, de quebra, isolar a China nuclearizada em 1964.

“Havia um impulso: a crença de que adversários ideológicos precisam restringir sua competição antes que aliados e neutros se empolgassem”, escreveu ele para o blog da prestigiosa associação Boletim dos Cientistas Atômicos (EUA).

Para muitos dos envolvidos com o assunto ao longo das décadas, contudo, a “realpolitik” não explica tudo.

“Embora a quantidade total dessas armas tenha diminuído consideravelmente ao longo do tempo, os arsenais existentes são suficientes para inviabilizar completamente a civilização humana caso sejam utilizados, por desígnio ou acidente”, resume o embaixador Duarte.

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