Descrição de chapéu The New York Times

Elas sobreviveram à gripe espanhola e ao Holocausto; agora, enfrentam o coronavírus

Mulheres que superaram catástrofes ensinam a saudar o terror com a serenidade dos iluminados

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Ginia Bellafante
Nova York | The New York Times

É quase impossível para a maioria de nós entender a frequência e brutalidade com que a vida foi posta de ponta-cabeça na primeira metade do século 20.

Epidemias e conflitos emergiram em escala épica, várias e várias vezes. Mortes, pobreza e limitações faziam parte da rotina; desastres eram tão recorrentes quanto as estações do ano.

A poeta e ativista sindical Naomi Replansky tem 101 anos e já passou por tudo isso. Nascida em maio de 1918 no apartamento de sua família no Bronx, sua chegada ao mundo coincidiu com o início da gripe espanhola.

A doença ceifou dezenas de milhões de vidas, muitas delas de crianças com menos de cinco anos, mas esteve longe de ser uma emergência de saúde pública isolada.

A poliomielite fora classificada como epidêmica em Nova York em junho de 1916. Naquele ano, 2.000 pessoas morreram da doença na cidade. Entre as que sobreviveram, muitas provavelmente ainda recordavam vividamente o surto de tifo que devastara a cidade nove anos antes disso.

O casal Eva Kollisch, à esq., e Naomi Replansky
O casal Eva Kollisch, à esq., e Naomi Replansky - Mary-Elizabeth Gifford via The New York Times

Até a chegada de uma vacina contra a pólio, na década de 1950, surtos da doença ocorriam regularmente quase todos os anos na primavera em algum lugar do país.

Reuniões públicas eram canceladas regularmente; as pessoas ricas das grandes cidades partiam para refugiar-se no campo. No início da década de 1920, a irmã bebê de Naomi teve pólio. A doença a deixou com uma perna permanentemente paralisada.

A mãe delas esperava que a hidroterapia promovida por Franklin Roosevelt em Warm Springs, Geórgia, ajudasse sua filha, mas a esperança não deu em nada.

“Foi um lugar alegre onde fomos, um lugar que levantou nossa moral”, disse Naomi, “mas não trouxe uma cura”.

Mais tarde, quando Naomi tinha 12 anos, seu irmão de 15 anos desenvolveu mastoidite. Na ausência de antibióticos, ele morreu em pouco tempo de algo que é essencialmente uma infecção de ouvido.

Dois fins de semana atrás, enquanto os nova-iorquinos tentavam entender a enormidade da crise atual, Naomi e sua esposa, Eva Kollisch, 95, estavam em casa em seu apartamento de um quarto no Upper West Side, em Manhattan, ouvindo Marian Anderson num disco de vinil.

O álbum em questão era “Spirituals”. Uma de suas cuidadoras regulares lhes dava assistência. Elas não estavam perturbadas.

“Ficar confinada não me incomoda”, Naomi me escreveu em e-mail. “Meu corpo capenga consegue lidar com mais confinamento.”

Naomi e Eva foram apresentadas por Grace Paley na década de 1980 numa leitura de poemas da autora.

Elas já tinham passado muito da meia-idade, quando as tragédias e as convulsões sociais das décadas anteriores haviam tocado tão intimamente cada uma delas. Quando as catástrofes ocorrem em sequência, acabam ensinando seus sobreviventes a saudar o terror com a serenidade dos iluminados.

Tanto Eva quanto Naomi foram alvos de antissemitismo na infância e juventude. Criada numa família de intelectuais judeus ricos nos arredores de Viena, Eva se recorda de ser espancada por um grupo de crianças quando tinha seis anos por ser uma “judia suja”.

Durante sua infância no Bronx, Naomi tinha conhecimento das transmissões radiofônicas fascistas do padre Coughlin, que saíam das janelas abertas de East Tremont durante o verão.

Seus avós haviam escapado dos pogroms (massacres de judeus) na Rússia, chegando à América na virada do século, numa época em que os hábitos dos imigrantes, considerados imundos e ignorantes, eram vistos como responsáveis pela propagação de doenças.

A primeira das convulsões na vida de Eva chegou com a guerra. Um ano após a anexação da Áustria pelos nazistas, em 1939, ela fugiu por meio do Kindertransport, uma série de missões de resgate que levaram crianças judias para lares britânicos.

Eva, então com 13 anos, viajou com seus irmãos, primeiro de trem para a Holanda e depois de navio até a Inglaterra.

“Quando chegamos à Holanda, tudo pareceu tão maravilhoso. Havia pessoas bondosas nos esperando na plataforma da estação”, contou Eva certa vez a uma entrevistadora de um projeto feminista de história oral. “Elas nos davam suco de laranja e sorriam para nós.”

Num primeiro momento, ela encarou tudo como uma aventura. “Mas então, quando já estávamos na Inglaterra, percebi em muito pouco tempo que eu sentia uma solidão enorme.”

Eva e seus irmãos foram dispersos, distribuídos entre famílias diferentes, enquanto seus pais permaneceram na Áustria. Em 1940, a família escapou do Holocausto e se reuniu novamente na América, desembarcando em Staten Island, Nova York.

Os pais de Eva haviam perdido tudo. Assim, sua mãe passou a trabalhar ensinando inglês a refugiados por 25 centavos de dólar a hora, para ganhar dinheiro e se tornar massagista. Seu pai, que na Áustria fora um arquiteto renomado, virou vendedor de aspiradores de pó.

Ao longo da vida, Naomi e Eva demonstraram o tipo de destemor alimentado pelas provações e dificuldades. Depois de concluir o ensino secundário, em Nova York, Eva foi a Detroit trabalhar numa fábrica de automóveis.

“Leve e ágil, seu trabalho consistia em pular sobre os capôs de jipes que desciam pela linha de montagem e prender os limpadores de para-brisas”, contou-me recentemente sua nora, Mary-Elizabeth Gifford. À noite, Eva era organizadora sindical, representando uma organização trotskista. Ela percorreu o país de carona.

Naomi terminou o ensino secundário em 1934, no auge da Grande Depressão. Trabalhou durante anos em escritórios, linhas de montagem e como torneira mecânica, antes de conseguir juntar dinheiro para estudar na Universidade da Califórnia em Los Angeles.

Ela foi uma das primeiras pessoas a ser programadora de computadores. Sua primeira coletânea de poemas, publicada em 1952, foi indicada para o Prêmio Nacional do Livro. Ela foi amiga de Richard Wright e Bertolt Brecht, cuja obra traduziu.

O sexismo e a homofobia interferiram inevitavelmente na vida das duas. A mãe de Eva achava que sua filha devia administrar um hotel ou um salão de beleza.

Mas Eva ambicionava uma vida urbana, cerebral, sofisticada. Ela acabou se tornando professora de literatura comparada no Sarah Lawrence College. Casou-se duas vezes com homens. Teve um filho com um deles. Foi amante de Susan Sontag.

Até a chegada do coronavírus, Eva e Naomi saíam com frequência. Faziam longas caminhadas quase todos os dias. Eram ativas numa comunidade budista em um centro de meditação.

Elas compravam hortifrútis na feira de pequenos produtores e almoçavam comida vegetariana no restaurante Effy’s.

Elas sentem mais saudades do que ficou para trás do que temem pelo que vem pela frente. Temem mais por sua “geração”, nas palavras de Naomi, do que por elas próprias, apesar de Naomi ter passado por uma pneumonia seis anos atrás.

Como poeta, Naomi preferia a ordem do formalismo. Em “Ring Song”, ela usa poesia leve para transmitir os ritmos repentinamente mutantes da privação e do contentamento, o senso de que a felicidade é em última análise um reflexo humano, tanto quanto uma aspiração:

"Quando vivo no corpo a corpo

Nua no mercado me coloco.

Quando lá estou e não sou vendida

Faço uma fogueira para me dar guarida.

Quando o frio não arrasa em demasia

Salto da emboscada para minha alegria."

Tradução de Clara Allain 

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