Há 31 anos, o senador Bernie Sanders queria criar um partido socialista nos EUA para desafiar não apenas o Partido Republicano, mas também o Democrata —exatamente a sigla pela qual ele tenta ser o candidato à Casa Branca.
A declaração faz parte de uma entrevista que o então prefeito de Burlington, maior cidade do estado de Vermont, concedeu à Folha em 1989, quando se preparava para deixar o cargo.
Na reportagem, publicada na edição de 15 de janeiro daquele ano e reproduzida abaixo, ele apontou o combate à desigualdade como prioridade e defendeu a presença do Estado na economia.
Na época, Sanders já chamava a atenção por se autodefinir como um socialista e por sua posição de independência em um país há muito dominado pelo sistema bipartidário.
Até hoje, o senador não faz parte oficialmente do Partido Democrata, embora quase sempre tenha votado alinhando com a legenda desde que chegou ao Congresso, em 1991 —primeiro como deputado e, a partir de 2007, como senador, sempre por Vermont.
Prefeito socialista quer criar o 3° maior partido do país
Fernando Rodrigues
(Enviado especial a Burlington)
Bernard Sanders é o único prefeito socialista dos EUA. Durante os oito anos que governou Burlington, a maior cidade do estado de Vermont, ele não estatizou nenhuma empresa, mas admite a participação do Estado em qualquer setor da economia.
Celebrado por toda a mídia, dos EUA e do exterior, Sanders propõe a formação do “terceiro” partido (socialista) do país, para “quebrar a hegemonia dos democratas e republicanos”.
Nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados, em 8 de novembro 1988, ele concorreu à única vaga a que o estado de Vermont tem direito. Perdeu para o candidato republicano por três pontos percentuais (38% a 41%). O candidato democrata ficou bem atrás, com apenas 19% dos votos.
A derrota por essa pequena margem funcionou como uma vitória para Bernie –diminutivo de Bernard, como é chamado pelos seus amigos e poucos inimigos. “É possível concorrer com sucesso contra o sistema bipartidário”, diz.
Aos 47 anos, Sanders deixa a prefeitura no início de abril. Ele não confirma, mas admite a possibilidade de concorrer ao governo de seu estado ou, de novo, a uma vaga na Câmara dos Deputados federal, em 1990. Caso vença, será o primeiro socialista a ocupar uma cadeira no Senado dos EUA desde a 2° Guerra.
No último dia 5 de janeiro, Bernard Sanders recebeu a Folha em seu gabinete. Bastante ocupado preparando o terreno para o seu provável sucessor –Peter Clavelle, que, como ele, participa do movimento Coalizão Progressista–, falou por mais de uma hora sobre suas ideias socialistas.
A seguir a entrevista:
Qual é o tipo de socialismo que o senhor defende?
Eu sou socialista democrático.
O senhor poderia ser mais específico?
Socialismo para mim significa que os seres humanos têm o direito inalienável de controlar suas próprias vidas. E isso significa que você não vai trabalhar para alguém que pode despedi-lo amanhã por qualquer motivo. Socialismo significa democracia, que, por sua vez, significa muito mais do que o direito de votar uma vez a cada quatro anos. A liberdade de votar em Ronald Reagan ou Walter Mondale [respectivamente candidatos republicano e democrata à Presidência dos EUA em 1984] uma vez a cada quatro anos não é o que democracia quer dizer.
O que o senhor propõe para os EUA?
Nós temos uma grande injustiça na distribuição da riqueza dos EUA. Apenas 1% da população recebe 50% das riquezas (US$ 5 trilhões). É absolutamente necessário que essa desigualdade –que está piorando– seja reparada. É necessária uma redistribuição da riqueza.
O senhor é favorável a algum tipo de estatização da economia?
Eu aprendi que não se estatiza só por estatizar. Mas acho apropriado o governo desempenhar qualquer papel, em qualquer área, que faça sentido.
O senhor encampou alguma empresa do setor privado?
Não apenas não fiz isso como eu sei que não poderia. Não dá para estatizar um banco. Eu seria derrotado pela lei. O problema é que neste país é necessário construir um movimento que seja capaz de mudar a consciência das pessoas.
Quanto tempo é necessário para que a consciência das pessoas mude?
É muito difícil de dizer. Vai depender do estado da economia. E eu acho a economia dos EUA muito mais frágil do que muita gente pensa. Mas o que é mais importante é a criação de um movimento político forte.
O que tem sido feito para a criação desse movimento?
O esforço de Jesse Jackson [reverendo e líder da luta pelos direitos civis] tem sido importante. Mas é necessário que as pessoas tenham coragem de ir de porta em porta e levantar suas próprias comunidades.
Quais são os principais obstáculos que essa ideia vai enfrentar nos EUA?
Os EUA têm uma classe dominante muito forte. Mas aqui não se manda os militares para manter o poder. Isso aqui não é o Brasil. Aqui a forma de dominação é através do sistema educacional, da mídia, onde a realidade diária da vida das pessoas não é discutida. O sistema bipartidário absorve quase toda a discussão.
O senhor considera algum tipo de aliança com Jesse Jackson?
A diferença é que eu não acho que um movimento político possa ser construído com sucesso dentro do Partido Democrata [Jesse Jackson disputou para ser o candidato do partido à Presidência em 1984 e em 1988, mas perdeu nas duas ocasiões].
Quem participaria desse novo partido?
A metade do eleitorado que não está votando. A maioria dessas pessoas é pobre ou trabalhadora. Há também bastante gente no movimento sindicalista, especialmente trabalhadores brancos, que estão cada vez mais conservadores porque não têm uma liderança política eficiente.
O senhor admira algum modelo político?
Acho que temos muito a aprender com os países escandinavos e com o Partido Nacional Democrata, do Canadá.
A social-democracia europeia não serviria de modelo ao seu partido?
Não.
Quem serão os líderes desse “terceiro” partido?
Um “terceiro” partido não será construído por um Jesse Jackson ou por qualquer outro. Não há soluções mágicas. O que é necessário são movimentos de base em comunidades locais.
O senhor está dizendo que esse “terceiro” partido nascerá espontaneamente?
Nada acontece naturalmente. Mas é necessário que seja de baixo para cima. Se um grupo em Los Angeles, na Califórnia, por exemplo, decide que não esta contente com o prefeito, com os vereadores, eles devem formar um movimento próprio e tentar eleger melhores pessoas.
Quando vários movimentos assim existirem será possível organizar um “terceiro” partido de baixo para cima. Se alguém pensa que dá para montar um partido leninista pequeno, dando alguns telefonemas, para tomar o poder do país, eu acho que essa pessoa está enganada.
Como o senhor implementou as suas ideias?
Eu fiz duas coisas. Primeiro, saí da estrutura partidária e derrotei os democratas e os republicanos. Eu ganhei quatro vezes seguidas a eleição para prefeito. Na Câmara, seis vereadores [há 13 no total] são da Coalizão Progressista, que é o nome do nosso movimento. Não temos ainda um partido formal.
A segunda coisa foi ampliar o nível da discussão política na cidade. Não estatizamos bancos, mas fizemos vários programas sociais, como centros para jovens, ou treinamento profissional para mulheres.
O senhor concorreu a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo estado de Vermont, em novembro, e perdeu a eleição. Poderia ser um sinal de que os país ainda não está preparado para um partido socialista no Congresso?
Eu recebi 38% dos votos. O candidato republicano, que venceu, teve 41%. Mas eu venci o democrata, que teve 19%. Isso quer dizer que é possível concorrer com sucesso contra o sistema bipartidário. Estamos chegando lá. É possível apresentar uma ideologia radical e não ser necessariamente rejeitado.
Quais são os planos políticos para o futuro?
Eu saio no início de abril. Não vou concorrer à reeleição. Ainda não sei o que farei depois.
O senhor considera possível uma nova candidatura à Câmara dos Deputados ou ao governo de Vermont em 1990?
É possível.
Em quem o senhor votou na última eleição para presidente?
Eu achava que se Dukakis [o candidato democrata na eleição presidencial de 1988] fosse eleito, ele seria um presidente muito ruim, mas Bush [o candidato republicano, que acabou eleito] seria pior. Votei em Dukakis.
Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.
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