Descrição de chapéu Coronavírus

Estudo sugere mundo mais descentralizado após fim de pandemia

Grupo de professores de universidade americana analisa reações globais online à crise do coronavírus

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São Paulo

Quando for mitigada ou acabar, a pandemia do novo coronavírus poderá legar um mundo mais descentralizado e com profundas alterações na forma com que a política é exercida.

Essa é a fotografia inicial do impacto da emergência sanitária global feita a partir de um estudo pioneiro de 21 professores da Universidade George Washington (EUA).

“Tudo o que for local vai ganhar muita força”, afirma um deles, o professor de estatística aplicada a ciências sociais Mauricio Moura, fundador e CEO do instituto de pesquisa e consultoria Ideia BigData, de São Paulo.

O grupo está analisando, em cooperação com acadêmicos de vários países, uma cornucópia de informações acerca das mudanças de hábitos devido à crise.

Pessoa atravessa rua vazia em Nova York em meio à pandemia de coronavírus
Pessoa atravessa rua vazia em Nova York em meio à pandemia de coronavírus - Angela Weiss - 27.mar.20/AFP

Em 25 dias, fizeram 120 mil entrevistas online em 15 países, analisaram 50 milhões de buscas diárias sobre a Covid-19 pela ferramenta Google Trends e avaliaram postagens de 15 milhões de contas do Twitter, em 80 países.

Tudo isso deverá ganhar musculatura acadêmica ao longo do ano, visando publicações. A iniciativa surgiu no âmbito da universidade, mas não é ainda um projeto dela.

Por ora, é uma grande pesquisa qualitativa mundial.

“Trabalhamos com alguns pilares de mudança, como a demanda por serviços e a densidade demográfica”, afirma Moura, que leciona em Washington desde 2008.

Segundo o brasileiro, os dados só dos EUA apontam que, até aqui, um terço daqueles que estão confinados para trabalhar em casa não acham que deverão voltar ao escritório ou à fábrica depois da crise.

“Isso impacta muito a mobilidade urbana e dificilmente as atividades de serviço serão iguais”, afirma.

Um item correlato americano é significativo: disparou a procura online por casas fora da cidade, para fugir do risco dos confinamentos nos grandes centros urbanos. Novamente, os meios de transporte serão afetados.

A disrupção de cadeias produtivas globais por causa das restrições de transporte, como no caso da indústria automotiva, também tem levado empresas de análise de risco a elaborar cenários de custo para adensar os processos de forma capilarizada.

Mas a grande mudança potencial está na política. Cresceu dez vezes, nos EUA, a procura pela opção de voto a distância. Lá, 33 dos 50 estados permitem tal modalidade.

Se parece uma obviedade dadas as quarentenas, o interesse sugere que as pessoas estão prevendo uma mudança permanente de hábito.

Mais significativo ainda, 66 países estão com assembleias locais ou Parlamentos funcionando de forma virtual, o Brasil por exemplo.

“Isso levará ao questionamento: por que não foi sempre assim? Por que manter tudo concentrado em
Brasília?”, pondera Moura.

Ele acha que um sistema mais parlamentarista e “distritalizado”, por assim dizer, seria consequência.

Isso implicaria o barateamento forçado das campanhas. “Antes, o digital era parte da campanha. Ele vai ser a própria campanha”, diz.

A tendência seria então um modelo de votação espraiado por diversos dias, como ocorre hoje na Índia.

Do país asiático vem um exemplo eventual do caminho a ser trilhado por candidatos em nações de dimensões continentais.

O premiê nacionalista Narendra Modi notabilizou-se por fazer comícios holográficos espalhados por várias cidades ao mesmo tempo.

Analisando o fluxo de dados do Brasil, Moura também fez um achado: nomes da área da saúde, como médicos, tenderão a ser fortes candidatos já no pleito municipal deste ano —se ele não acabar adiado pela Covid-19.

“Estão surgindo muitos heróis da saúde nessa crise”, diz. Seria uma continuação da negação antipolítica registrada em 2018, mas agora focada em figuras “próximas dos problemas das pessoas”.

Em países europeus mais afetados pelo coronavírus, esse denominador comum solapou as discussões online sobre motes separatistas.

A independência da Catalunha, que era um tema central de discussões na Espanha e motivo de forte divisões no país, sumiu do mapa digital.

Mas e a polarização que marca o país tão fortemente? “Pelo que vemos, a crise tem um poder unificador.

No Brasil, Bolsonaro não conseguiu unificar o país, ele foi num caminho contrário daquele dos outros líderes mundiais”, afirma Moura.

Significativamente, um quadro compilado pela consultoria americana Morning Consult e adicionado ao estudo, com base em agregados de pesquisas de opinião, mostra que Bolsonaro foi o único entre nove líderes mundiais a ter queda de aprovação (cinco pontos) após a pandemia ser declarada, no dia 11 de março.

O premiê japonês, Shinzo Abe, ficou estável, enquanto o agora doente de Covid-19 Boris Johnson (Reino Unido) subiu 27 pontos. Mesmo uma figura arestosa como a do americano Donald Trump viu sua aprovação subir cinco pontos.

Moura relativiza o dado. “Isso é agora. Ninguém sabe o que acontecerá mais à frente. É um fenômeno exógeno inédito, que nunca vivemos na globalização”, diz.

Ele avalia, aí baseado nos dados de seu próprio instituto, que a aprovação de Bolsonaro pode ter caído, mas está longe de um derretimento. “Ele tem uma base bem sólida, talvez 20% do eleitorado.”

Uma coisa que chama a atenção dos pesquisadores é uma tendência global de ignorar, neste momento, a questão da privacidade.

Na China, berço da pandemia no fim de dezembro e hoje aparentemente controlando o caos, muito do trabalho do governo passou pelo monitoramento dos dados de saúde de seus habitantes, por meio de celulares.

Com a tecnologia hoje disponível, é fácil controlar fluxos populacionais com geolocalização e identificar, por exemplo, indivíduos com febre na multidão.

Reconhecimento facial, uma constante nas cidades chinesas, também teve um papel relevante nisso. Ocorre que o país é uma ditadura comunista, onde raramente há possibilidade de dissenso.

“Haverá um dilema ético sobre abrir mão da privacidade de seus dados de saúde ou pensar no bem coletivo”, especula Moura.

A partir da sucessão de escândalos envolvendo privacidade, o mundo caminhava numa direção de proteção individual. Agora, o imperativo de uma crise sanitária que pode perdurar ou antecipar outras semelhantes poderá dar o tom.

Isso é tema de inúmeras distopias acerca do papel do Estado em momentos agudos, mas é a primeira vez na era da globalização que o tema emerge como realidade.

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