Descrição de chapéu The New York Times

Grécia detém migrantes em centro secreto antes de expulsá-los para Turquia

Imigrantes com destino à Europa são mantidos sem comunicação, violando leis internacionais

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Poros (Grécia) | The New York Times

O governo grego está detendo migrantes em um local secreto e ilegal antes de expulsá-los para a Turquia sem processo judicial, uma medida radical adotada para fechar as fronteiras para a Europa que viola o direito internacional, segundo especialistas.

Vários migrantes disseram em entrevistas que foram capturados, privados de seus pertences, espancados e expulsos da Grécia sem terem oportunidade de pedir asilo ou de falarem com um advogado, em um processo ilegal conhecido como "refoulement" (devolução, em francês).

Enquanto isso, as autoridades turcas afirmaram que pelo menos três migrantes foram mortos a tiros quando tentavam entrar na Grécia nas últimas duas semanas.

A abordagem grega é um claro exemplo dos esforços europeus para impedir uma repetição da crise migratória de 2015, quando mais de 850 mil pessoas sem documentos passaram com certa facilidade pela Grécia para chegar a outros países do continente, estimulando a ascensão da extrema direita em diversos países.

Se outros milhares de refugiados chegarem à Grécia, as autoridades locais temem ter de cuidar deles durante anos, com pouco apoio de outros membros da União Europeia, exacerbando as tensões sociais e desgastando ainda mais uma economia exaurida.

Dezenas de milhares de migrantes já vivem na pobreza em várias ilhas gregas, e muitos gregos sentem que ficaram com um fardo criado pela indiferença geral europeia.

O governo grego defendeu seus atos como uma resposta legítima às recentes provocações das autoridades turcas, que transportaram milhares de migrantes para a fronteira entre os dois países desde o final de fevereiro e incentivaram alguns a atacar e desmontar uma cerca na divisa.

As autoridades gregas negaram os relatos de mortes na fronteira. Um porta-voz do governo grego, Stelios Petsas, não comentou a existência do local de detenção, mas disse que a Grécia deteve e expulsou migrantes de acordo com a lei local.

Uma lei aprovada em 3 de março por decreto presidencial suspendeu os pedidos de asilo por um mês e permitiu deportações imediatas.

Por meio de uma combinação de reportagem em campo e análise forense de imagens de satélite, o New York Times confirmou a existência do centro secreto no nordeste da Grécia.

Após examinar diagramas do local e uma descrição de suas operações, François Crépeau, ex-relator especial da ONU sobre direitos humanos de migrantes, disse que é o equivalente a um "buraco negro" doméstico, já que os detentos são mantidos em segredo e sem acesso a recurso jurídico.

Usando gravações fornecidas a vários canais de mídia, o Times também concluiu que a guarda costeira grega, nominalmente uma instituição que salva vidas, disparou tiros na direção de migrantes em um bote que tentava chegar a praias gregas no início deste mês, espancou refugiados com paus e os tentou repelir navegando perto deles em alta velocidade, quase fazendo-os virar na água.

A análise forense de vídeos fornecidos por testemunhas também confirmou a morte de pelo menos uma pessoa —um operário sírio— depois de receber tiros na fronteira greco-turca.

Local secreto

Quando as autoridades turcas começaram a enviar migrantes de ônibus para a fronteira grega, em 28 de fevereiro, um curdo-sírio chamado Somar al-Hussein estava num dos primeiros ônibus.

A Turquia já abriga mais refugiados que qualquer outro país —mais de 4 milhões, na maioria sírios— e teme ser obrigada a admitir mais 1 milhão devido à recente intensificação das lutas no norte da Síria.

Para aliviar essa pressão e obrigar a Europa a ajudar mais, Ancara usou os refugiados como arma, empurrando-os para o continente.

Al-Hussein, um engenheiro de software, passou aquela noite sob a chuva na margem do rio Evros, que divide a parte oeste da Turquia do leste da Grécia. Na manhã seguinte, ele chegou ao lado grego em um bote de borracha cheio de migrantes.

Mas sua viagem terminou uma hora depois, disse ele em uma entrevista recente. Capturado por guardas de fronteira gregos, ele e seu grupo foram levados a um local de detenção.

Seguindo a jornada do grupo em seu celular, ele determinou que o local ficava a poucas centenas de metros a leste da aldeia de Poros, na fronteira.

O local consistia principalmente em três armazéns com telhados vermelhos afastados de uma estrada rural e dispostos em forma de U. Centenas de outros migrantes capturados esperavam do lado de fora.

Al-Hussein foi levado para dentro e colocado em um quarto lotado, com dezenas de outros.

Seu telefone foi confiscado para impedir que se comunicasse, disse ele, e seus pedidos para solicitar asilo e contatar autoridades da ONU foram ignorados.

"Para eles, somos como animais", disse al-Hussein, referindo-se aos guardas gregos.

Depois de uma noite sem comida ou bebida, em 1º de março al-Hussein e dezenas de outros foram levados de volta ao rio Evros, onde policiais gregos os transportaram ao lado turco em uma pequena lancha.

Al-Hussein foi um de vários migrantes que fizeram relatos semelhantes de detenções extrajudiciais e expulsões, mas seu depoimento foi o mais detalhado.

Ao comparar desenhos, descrições e coordenadas de satélite que ele forneceu, o Times conseguiu localizar o centro de detenção na zona rural entre Poros e o rio.

Uma ex-autoridade grega com conhecimento das operações policiais confirmou a existência do lugar, que não é classificado como centro de detenção, mas é usado informalmente em períodos de alto fluxo migratório.

Na sexta-feira (6), três jornalistas do Times foram parados em um bloqueio na estrada perto do local por policiais uniformizados e oficiais mascarados das forças especiais.

A existência do lugar também foi mais tarde confirmada pelo grupo de pesquisas sueco Respond.

Crépeau, que hoje é professor de direito internacional na Universidade McGill (Canadá), disse que o centro representa uma violação do direito de pedir asilo e "da proibição de tratamento degradante, cruel e desumano e da lei da União Europeia".

Morte em terra

O incidente mais contestado se refere à morte a tiros de Mohammed Yaarub, um sírio de 22 anos de Alepo que tentou cruzar a fronteira terrestre do norte da Grécia com a Turquia na semana passada.

O governo grego rejeitou sua morte como "fake news" e negou que alguém tenha morrido na fronteira na última semana.

Uma análise de vídeos, juntamente com entrevistas de testemunhas, confirmou que Yaarub foi morto na manhã de 2 de março na margem oeste do rio Evros.

Yaarub morava na Turquia havia cinco anos e trabalhava numa fábrica de sapatos, segundo Ali Kamal, um amigo que viajava com ele.

Os dois cruzaram o Evros em 1º de março à noite e acamparam com um grande grupo de migrantes na margem oeste do rio.

Por um detalhe cartográfico, eles ainda estavam na Turquia. Embora o rio sirva em geral como fronteira entre os dois países, esse pequeno trecho de terra é uma das poucas partes da margem ocidental que pertencem à Turquia e não à Grécia.

Kamal viu o amigo vivo pela última vez por volta de 7h30 da manhã seguinte, quando o grupo começou a caminhar para a fronteira.

Os dois foram separados, e em breve as forças de segurança gregas os bloquearam, segundo outro sírio que filmou a situação após o incidente e depois foi entrevistado pelo Times. Ele pediu para manter o anonimato por temer retaliação.

Durante o confronto, Yaarub começou a falar com os homens que bloqueavam o caminho e ergueu uma camisa branca, dizendo que vinha em paz, contou o sírio. Pouco depois, foi atingido por tiros.

Não há um vídeo do momento do impacto, mas vários vídeos captaram seu corpo imóvel sendo carregado para longe da fronteira grega, em direção ao rio.

Vários migrantes que estavam com Yaarub no momento de sua morte disseram que um oficial de segurança grego o matou.

Usando metadados de vídeos e analisando a posição do sol, o Times confirmou que ele foi morto por volta das 8h30, mesma conclusão alcançada pela Forensic Architecture, grupo de pesquisas investigativas.

O vídeo mostra que os outros migrantes levaram cerca de cinco minutos para transportar de barco o corpo de Yaarub à outra margem e colocá-lo num carro. Então ele foi levado a uma ambulância e depois a um hospital turco.

Uma análise de gravações em outros pontos da fronteira mostrou que as forças de segurança gregas usaram munição letal e não letal em outros incidentes naquele dia, provavelmente disparada com uma mistura de rifles de assalto e semiautomáticos.

Apoio da UE à Grécia

Petsas, o porta-voz do governo, defendeu as ações duras da Grécia como uma reação razoável a "um ataque assimétrico e híbrido vindo de um país estrangeiro".

Além de levar os migrantes de barco até a fronteira, a polícia turca também disparou bombas de gás lacrimogêneo na direção das forças gregas e apenas observou enquanto os migrantes desmontavam parte de uma cerca na fronteira, o que foi filmado por um jornalista do Times.

Antes que essa evidência de violência e sigilo viesse à tona, a Grécia foi elogiada por líderes da União Europeia, que visitaram a fronteira em 3 de março.

"Queremos expressar nosso apoio por tudo o que vocês fizeram com seus serviços de segurança nos últimos dias", disse Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, o principal órgão de tomada de decisões do bloco.

A Comissão Europeia, braço administrativo da UE, disse que "não tinha condições de confirmar ou negar" as conclusões do Times, e pediu que o sistema judicial grego investigue.

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