Memória do fim da ditadura chilena se mescla a atos contra Piñera

Estudantes vão às ruas em protesto contra os dois anos do governo de centro-direita

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Buenos Aires

Os chilenos têm nesta quarta-feira (11) um motivo para celebrar e outro para protestar. E ambos estão relacionados.

De um lado, comemoram os 30 anos do fim da ditadura no país. De outro, gritam contra os dois anos do centro-direitista Sebastián Piñera no cargo.

Como 11 de março de 1990 marca o momento em que Augusto Pinochet (1915-2006) entrega o poder ao primeiro líder eleito democraticamente após o regime militar, a data se tornou também o dia das posses presidenciais.

Mergulhado em uma profunda crise social, o presidente chileno se vê em meio a seguidos protestos e a uma enorme queda de popularidade —hoje, sua aprovação está em 6%, segundo o instituto Cadem.

As manifestações, que começaram em outubro contra o aumento do preço das passagens de metrô e desembocaram numa pauta diversa sobre desigualdade social —acesso à saúde pública e sistema de aposentadorias, entre outros pontos—, arrefeceram em dezembro.

Jovem chileno enfrenta a polícia em protesto em Santiago
Jovem chileno enfrenta a polícia em protesto em Santiago - Martin Bernetti/AFP

Voltaram com força em março, quando os estudantes, motor dos atos antigoverno, retornaram às aulas.

No dia 3, a violência paralisou parte do sistema de transporte público da capital, Santiago. Ao menos 283 pessoas foram presas, e manifestantes saquearam lojas, destruíram estações de metrô, montaram barricadas nas ruas e atacaram postos policiais.

Menos de uma semana depois, na sequência do Dia da Mulher, milhares de mulheres participaram de uma greve para defender bandeiras feministas e de direitos civis, no segundo dia consecutivo de manifestações sobre o tema no país.

Nesta quarta-feira, houve nova rodada de manifestações em diferentes pontos da capital —muitos estudantes usavam jaleco branco e capuz.

Vários grupos entraram em confronto com a polícia, que usou jatos de água e bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os protestos.

O trânsito foi interrompido em algumas vias, e várias estações de metrô foram fechadas.

Há uma agenda de atos previstos para todas as sextas-feiras até 26 de abril, quando ocorrerá o plebiscito para decidir se haverá uma nova Assembleia Constituinte, proposta impulsionada por Piñera em reação às demandas populares.

Os escolhidos devem promulgar uma nova Carta, que substituirá a atual, do tempo da ditadura militar.

Para a escritora e militante de esquerda Diamela Eltit, 70, uma nova Constituição pode não contemplar todas as demandas da população, mas seria "um símbolo de muito impacto, que ajudaria a reunificar o país e contemplar as minorias". "Algo que deveria ter sido feito logo depois da ditadura, mas que continuou sendo um projeto sempre adiado", diz ela à Folha.

Embora seja uma entusiasta da presença dos jovens nas ruas nos últimos meses, Eltit, autora do romance "Jamais o Fogo Nunca", sobre pessoas que resistiram à ditadura militar, chama a atenção para a possibilidade de "os protestos passarem a ser uma forma de fascismo popular".

"Para evitar isso, é preciso que um grupo, eleito democraticamente ou de políticos já eleitos, assuma essas bandeiras de modo legal."

Promulgada nos anos de Pinochet, a Constituição chilena atinge pautas centrais dos manifestantes, como o sistema de aposentadorias. De acordo com a Carta atual, a contribuição deve ser recolhida pelos próprios trabalhadores.

Na gestão da centro-esquerdista Michelle Bachelet, o Estado passou a participar do rateio previdenciário, mas a ex-presidente jamais conseguiu transformar a alteração em uma nova lei. Tampouco obteve apoio para a proposta de uma Assembleia Constituinte.

Outra demanda relacionada à ditadura é o fim da violência e dos abusos cometidos pelos Carabineros, força armada que reprime duramente as manifestações. Piñera alega que o uso dos agentes é necessário, porque haveria nos atos infiltrações de grupos estrangeiros financiados por Venezuela ou Cuba.

O fato é que centenas de pessoas perderam parcialmente a visão por ferimentos por balas de borracha e, até agora, confrontos durante os protestos já deixaram mais de 30 mortos.

"Quando dizemos que há feridas abertas desde o tempo da ditadura, não nos referimos a uma questão de linguagem, pois a atuação e o treinamento dos Carabineros de hoje é herdeira do modo como agiam na ditadura", diz o cientista político Fernando García-Naddaf.

"Antes do regime militar, o Exército tinha uma outra leitura, muito mais ponderada, do que era o país e suas diferenças sociais históricas."

Embora a maior parte dos historiadores concorde que a transição democrática ocorreu entre o plebiscito de 1988, que determinou o fim do regime militar, e 11 de março de 1990, quando Patricio Aylwin (1918-2016) assumiu, há discordâncias.

Alguns afirmam que a transição só se completou com a vitória de Bachelet, em 2006, quando a filha de um ex-militar ligado a Salvador Allende, morto pela ditadura de Pinochet, chegou à Presidência. Há ainda outros que defendem que ela só se completará quando a atual Constituição for substituída.

Para o analista político Patricio Navia, no entanto, o fato de a atual Carta se manter há muitos anos mostra que "para algo ela funciona". "Além disso, há setores da sociedade que não veem por que mudá-la. Não sei se será tão fácil convencer os chilenos, no plebiscito, que devemos substituí-la." 

Durante a gestão do socialista Ricardo Lagos (2000-2006), o documento sofreu 56 alterações —a maioria para retirar aspectos mais linha-dura. Permaneceram, porém, pontos relativos à aposentadoria, além da lei antiterrorismo, usada por gestões de direita contra, por exemplo, ataques de indígenas mapuches, que exigem demarcação de suas terras e respeito à identidade cultural.

"Temos que formar uma Assembleia Constituinte com uma representação muito igualitária entre chilenos de esquerda e de direita, representantes de minorias e dos povos originários. Se esse plebiscito não servir para isso, não alcançaremos esse objetivo", diz a escritora Lina Meruane.

O Chile ainda está muito atrás da Argentina, por exemplo, na investigação de crimes da ditadura, mas nos últimos anos houve vários avanços.

No campo dos direitos humanos, a Justiça chilena vem julgando delitos do período militar sob o conceito do "desaparecimento continuado" —em termos práticos, se o corpo de uma vítima não é encontrado, considera-se que o crime ainda está sendo cometido, todos os dias.

Também aplica-se a lei de direito internacional estabelecida pelo Estatuto de Roma que classifica como livre de prescrição os crimes de lesa-humanidade —assassinatos, sequestros e torturas cometidos pelo Estado.

"Assim, é possível driblar a lei da anistia, assinada em 1978, e investigar crimes como o desaparecimento do cantor popular Victor Jara e o caso Quemados [em que dois estudantes foram queimados vivos por oficiais do Exército durante uma manifestação]", diz o juiz Mario Carroza.

Segundo estimativas de organizações de direitos humanos, houve cerca de 3.000 desaparecidos durante a ditadura chilena.

Um pouco desse trabalho começou logo após a redemocratização, quando Aylwin comandou o Informe Retting, uma espécie de Comissão da Verdade que recolheu mais de 3.500 denúncias de sequestros e torturas. O trabalho segue sendo base, até hoje, para investigações da Justiça.

Para García-Naddaf, o Chile não está tão mal na foto como as imagens das manifestações presumem.

"Temos um sistema político que funciona, temos democracia, temos instituições, temos separação de poderes e um sistema eleitoral justo, além de uma inegável liberdade de imprensa", argumenta o cientista político.

"O início [das mudanças] não será a partir de solo arrasado. E sim a partir do que esses 30 anos de democracia conseguiram avançar."

Cronologia da ditadura no Chile

3.nov.1970 - O socialista Salvador Allende assume a Presidência; seu governo é marcado por uma crise política e econômica, especialmente a partir de 1973

29.jun.1973 - Liderados por um coronel, um grupo paramilitar de direita tenta dar um golpe, mas é impedido pelo Exército; em agosto, deputados aprovam uma moção contra o governo, mas ela não passa no Senado

11.set.1973 - Tropas lideradas pelo general Augusto Pinochet, comandante do Exército, atacam o palácio presidencial de La Moneda para forçar a saída de Allende, que se suicida; os militares tomam o poder e estabelecem uma junta provisória para comandar o país

13.set.1973 - A junta imediatamente suspende a Constituição e proíbe a existência dos partidos de esquerda que apoiavam Allende. Até o final do ano, 1.213 pessoas são mortas pelo regime e outras milhares são presas ou deixam o país

27.jun.1974 - Com apoio do restante da junta, Pinochet se autoproclama “chefe supremo da Nação”; em dezembro, ele assume oficialmente como presidente e se consolida como ditador

11.set.1980 - Nova Constituição, redigida por um grupo indicado por Pinochet, é aprovada em um plebiscito criticado pela oposição; a Carta fortalece os poderes do ditador

mai.1983 - Estudantes protestam contra o ditador, na primeira primeira grande onda de manifestações contra o regime, que responde com violência

5.out.1988 - Em um plebiscito para decidir se Pinochet deveria continuar no poder por mais oito anos, o “não” vence com 56% dos votos; sob pressão de empresários e da comunidade internacional, o ditador aceita o resultado e dá início à transição

30.jun.1989 - Abertura política é confirmada após a população aprovar em referendo uma mudança de 54 pontos da Constituição

14.dez.1989 - Depois de 16 anos da ditadura, o Chile realiza eleições livres; o democrata-cristão Patricio Aylwin é eleito presidente, e sua coalizão de centro-esquerda conquista a maioria no Legislativo  

11.mar.1990 - Aylwin assume como presidente, pondo fim à ditadura de Pinochet; o general, porém, segue como comandante do Exército até 1998 e depois se torna senador vitalício até morrer em 2002

Com AFP

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