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Pesquisas acadêmicas reúnem escolhas de última refeição de condenados à morte nos EUA

Divulgar pratos selecionados por presos ajuda a defender uso de pena capital, diz pesquisador

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The New York Times

Em algum momento no último dia 1º de outubro, Russel Bucklew recebeu um “gyros” (carne assada num forno vertical), um sanduíche de ponta de peito bovino defumado, duas porções de fritas, um refrigerante e uma banana split.

Sabemos disso porque, pouco depois de ele ser executado, às 18h23 desse dia, o Departamento Correcional do Missouri passou a um grupo de jornalistas os detalhes sobre a última refeição pedida pelo condenado.

Li sobre as preferências alimentares de Bucklew em um tabloide britânico. Foi um detalhe banal, mas interessante, na conclusão de um drama horrendo que começou com um homicídio e estupro em 1996, envolveu vários recursos que chegaram até a Suprema Corte e foi encerrado com a morte de Bucklew por injeção letal.

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Recriação da última refeição do prisioneiro Ted Bundy - Henry Hargreaves via The New York Times

Essa é a realidade sombria por trás do interesse excessivo que alguns de nós nutrimos por um grande questionamento: se você tivesse que escolher a última refeição de sua vida, o que seria?

Ao longo de minhas duas décadas como crítico de restaurantes para um jornal britânico, já fui convidado diversas vezes, e não apenas por chefs ofendidos, a me imaginar no corredor da morte.

O que eu escolheria comer? Eu sempre disse a meus entrevistadores que, nessa situação, eu perderia meu apetite.

Os candidatos óbvios às derradeiras refeições –qualquer pessoa que se encontra à beira da morte— estão em situação igualmente imprópria para consumi-las.

Mesmo assim, a ideia de uma coleção de pratos que possam resumir quem você é, representando suas melhores recordações alimentares, é tremendamente atraente.

Acabei decidindo sair atrás de minhas próprias melhores recordações gastronômicas e escrever um livro sobre elas enquanto eu ainda estivesse em condições de saúde para poder me deleitar com o resultado.

Mas, antes de embarcar na aventura culinária máxima, achei apropriado investigar as derradeiras refeições de condenados da morte, para conferir um toque de realidade à brincadeira.

Uma coisa ficou clara. Mais de 50 países ainda têm a pena de morte e continuam a aplicá-la, mas apenas os Estados Unidos parecem ter adquirido uma literatura altamente desenvolvida sobre seu aspecto culinário, literatura essa que é tanto popular quanto acadêmica.

Há inúmeros relatos disponíveis sobre pedidos de frango frito e hambúrgueres, de sorvete e cookies com gotas de chocolate; a comida de um dia de festa na infância, pedida por homens –são quase todos homens— prestes a serem executados pelo Estado.

Há teses acadêmicas com títulos como “Refeições Derradeiras: O Teatro do Castigo Capital”, de Christopher C. Collins, doutorando na Southern Illinois University quando a escreveu, em 2009. O artigo descreve a oferta dessas refeições como parte do ritual dramático da morte sancionada pelo Estado.

Há a tese de 2007 “Derradeiras Palavras, Derradeiras Refeições e Derradeiras Resistências: Autonomia e Individualidade no Processo de Execução Moderno”, de Daniel LaChance, da Universidade do Minnesota.

Ele argumentou que a prática de deixar o condenado escolher sua derradeira refeição –um cardápio que então era divulgado pela mídia— retratava os prisioneiros do corredor da morte como “atores autônomos dotados de escolhas próprias e individualidade”.

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Recriação da última refeição do prisioneiro John Wayne - Henry Hargreaves via The New York Times

Em suma, disse LaChance, ela ajudava a caracterizar esses presos como “monstros que se fizeram assim por escolha própria, que são intrinsecamente diferentes por sua própria opção”.

Isso, por sua vez, ajudava a defender o valor da pena de morte, ressaltando a ideia de que os condenados mereciam essa pena.

Ainda outro artigo acadêmico, publicado em 2012 pelo periódico Appetite, traz uma análise detalhada do que seus autores descrevem como “nutrição no corredor da morte”.

Um de seus autores é Brian Wansink, que em 2018 renunciou à sua cadeira de professor na Universidade Cornell depois de a metodologia empregada em muitos de seus estudos sobre as escolhas alimentares de consumidores ter sido questionada.

Mesmo assim, o artigo ainda é citado com frequência, possivelmente devido aos detalhes minuciosos que oferece.

O artigo analisa 247 derradeiras refeições, todas pedidas entre 2002 e 2006 por prisioneiros condenados nos Estados Unidos.

A média calórica das refeições pedidas foi de 2.756, mas quatro pedidos, feitos no Texas e Oklahoma, teriam passado de 7.000 calorias.

As opções pedidas são típicas do cardápio dos restaurantes populares americanos –70% dos condenados pediram comida frita. Muitos pediram marcas específicas: 16% optaram por Coca-Cola, enquanto três queriam tomar Coca Diet.

Ao lado desses estudos acadêmicos há representações populares das últimas refeições, como as recriações fotográficas das refeições criadas por Jacquelyn C. Black ou o livro de receitas publicado em 2004 por Brian D. Price, ex-detento no Texas que preparou muitas das derradeiras refeições quando estava na prisão e quis compartilhar as receitas.

Ele titulou seu livro “Meals to Die For” (em português, refeições pelas quais vale a pena morrer, ou seja, deliciosas).

O Estado do Texas abandonou em 2011 a tradição da última refeição especial para prisioneiros prestes a serem executados, depois de o assassino Lawrence Russell Brewer ter feito um pedido enorme –dois steaks de frango frito, meio quilo de carne grelhada e assim por diante—, mas não ter comido nada.

O fotógrafo neozelandês Henry Hargreaves se interessou pela notícia e começou a pesquisar o assunto.

“A pena de morte deixou de ser algo abstrato para mim”, disse Hargreaves.

“O detalhe das refeições pedidas pelos condenados no corredor da morte me mostrou o aspecto humano da questão. Pensei: ‘Se eu consigo sentir empatia por essas pessoas graças às suas últimas refeições, outras pessoas também vão sentir’.”

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Recriação da última refeição do prisioneiro Timothy McVeigh's, que pediu sorvete de menta com gotas de chocolate - Henry Hargreaves via The New York Times

Em seu apartamento no Brooklyn, em Nova York, Hargreaves começou a recriar e fotografar as últimas refeições dos condenados.

Havia o pedido de sorvete de hortelã com gotas de chocolate feito por Timothy McVeigh, autor do atentado em Oklahoma City.

Havia o balde de frango frito pedido pelo serial killer John Wayne Gacy, que tinha sido gerente de um restaurante KFC no passado.

E havia a refeição pedida por Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, imigrantes italianos executados em 1927 por matar dois homens em um assalto à mão armada.

O caso deles provocou protestos em todo o mundo, e 50 anos mais tarde o governador do Massachusetts declarou que eles não tiveram direito a um julgamento justo.

“Minha intenção com essas imagens não foi pregar o que é certo ou errado”, disse Hargreaves, cuja coletânea de imagens, intitulada “No Seconds” foi exposta na Bienal de Veneza em 2013.

“Eu queria que as pessoas olhassem para elas e refletissem sobre as questões envolvidas. É esse o papel da arte.”

Kristina Roth, encarregada de programas de justiça criminal junto à seção americana da Anistia Internacional, que se opõe à pena de morte, disse que “a publicidade em torno das derradeiras refeições dos condenados à morte às vezes leva o público geral a refletir sobre a realidade sombria de a pessoa enfrentar a execução em um horário predeterminado”.

“O aspecto de ‘normalidade’ da última refeição é uma espécie de conexão entre o mundo macabro do corredor da morte e o cotidiano”, disse ela em declaração à imprensa.

Michael Rushford, presidente da Fundação de Justiça Criminal Legal, que defende a pena de morte, discordou. “Os 60% da população que apoiam a pena de morte não ligam para isso”, disse ele.

Robert Durnham é diretor executivo do Centro de Informação sobre a Pena de Morte, entidade sem fins lucrativos que divulga análises e informação sobre a pena de morte, mas não assume posição sobre ela.

Ele descreveu o interesse pelas refeições no corredor da morte como “sensacionalismo voyeurístico”.

Tradução de Clara Allain

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