Descrição de chapéu

Símbolo sandinista, Cardenal celebrou Ortega revolucionário e condenou versão autoritária

Poeta e padre nicaraguense morreu neste domingo (1º), aos 95 anos

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Buenos Aires

Quando o papa João Paulo 2º chegou ao aeroporto de Manágua, capital da Nicarágua, em 4 de março de 1983, o escritor, sacerdote e então ministro da Cultura do governo sandinista, Ernesto Cardenal, estava ajoelhado, esperando-o.

​O pontífice, porém, em vez de cumprimentá-lo, repreendeu-o, diante de câmeras fotográficas e de TV. 
Disse a ele, com o dedo em riste: "Você deve regularizar sua situação".

Ele se referia às atividades políticas que Cardenal realizava como defensor da Teologia da Libertação.

Cardenal aparece nas imagens daquela época impassível, olhando para o pontífice com um sorriso. Não seguiu o conselho do papa, que em 1984 o suspendeu de sua missão sacerdotal. 

O poeta e sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal durante celebração de seu aniversário de 90 anos, em Manágua
O poeta e sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal durante celebração de seu aniversário de 90 anos, em Manágua - Oswaldo Rivas - 27.jan.15/Reuters

Cardenal só seria reabilitado décadas depois, pelo papa Francisco, a quem admirava e elogiava publicamente.

Morto no último domingo (1º), aos 95 anos, Cardenal era um homem de fortes convicções e autor de uma longa obra literária, reconhecida por vários prêmios, como o Reina Sofía de Poesía Iberoamericana.

Nascido em Granada, em 20 de janeiro de 1925, foi ordenado como sacerdote em 1965 e se estabeleceu no arquipélago de Solentiname, que fica no Grande Lago da Nicarágua. 

Ali, fundou uma comunidade de artistas e pescadores, foi visitado por autores como o argentino Julio Cortázar e o uruguaio Eduardo Galeano.

Nas ilhas, também recebia guerrilheiros que depois foram perseguidos e não tinham onde se esconder. 

Ali também escreveu "O Evangelho em Solentiname" (1975), uma de suas obras mais famosas. Nesse mesmo arquipélago, onde também celebrava missas, o corpo de Cardenal será velado e enterrado nesta segunda-feira (2).

Sua atividade política ganhou projeção no mundo inteiro quando, nos anos 1970, apoiou a luta armada durante a Revolução Sandinista para derrubar a ditadura dos Somoza. 

Vencida a ditadura, Cardenal esteve ao lado do então revolucionário e hoje ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, chegando a participar de seu governo e a fazer propaganda dele em seus escritos. 

Poemas como "O Canto Nacional" falavam do revolucionário Augusto Sandino, inspirador da guerrilha sandinista.

A mesma convicção, porém, afastou Cardenal de Ortega, quando este voltou ao poder, em 2007, transformando seu governo numa ditadura. 

Cardenal foi criticado e multado por Ortega, chegou a ter suas contas bloqueadas e dependeu de amigos para cuidar da saúde. 

Além disso, o ditador pretende, ainda, seguir com a construção de um canal, por meio de um investimento chinês, que cruzaria a Nicarágua.

Esse canal afetaria o Grande Lago da Nicarágua, inundaria vilarejos e afetaria comunidades indígenas. 

Também destruiria o amado arquipélago de Cardenal, o Solentiname. Por conta disso, ele denunciou Ortega e se colocou ao lado dos que se opõem a essa construção. 

Em uma entrevista ao jornal espanhol El País, em 2017, Cardenal afirmou que "Ortega e Rosario Murillo [mulher do ditador e que ocupa o cargo de vice] são donos de todos os poderes na Nicarágua".

"Têm um poder absoluto, infinito, que não tem limites, e esse poder agora está contra mim."

Mais de uma vez, Cardenal pediu a renúncia do casal. Mesmo no final de seus dias, apesar de Ortega ter se transformado num ditador, o poeta não se arrependia de ter apoiado a revolução. 

"Foi uma revolução muito bela, o que acontece é que foi traída. O que há agora é uma ditadura familiar. Não era isso que nós apoiávamos naquela época." 

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