Descrição de chapéu Coronavírus

Brasileiros escutam 'good morning, coronavirus' em atos xenófobos no exterior

Segundo depoimentos, na Índia e na África estrangeiros são chamados de 'corona' e expulsos de hotéis

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Viçosa (MG)

“Corona, corona! Volte para o seu país.” Em meio à pandemia de coronavírus, brasileiros contam que vêm sendo vítimas de hostilidades no exterior. Segundo relatos de viajantes na Índia e em alguns países da África, eles e outros estrangeiros têm sido expulsos de hotéis, sofrido constrangimento por parte de autoridades locais e ouvido frases como a da abertura deste texto na rua.

Até na China, origem da pandemia, há casos de preconceito contra estrangeiros, desde que o país conseguiu reduzir a transmissão local e começou um esforço para evitar uma segunda onda de contaminação, desta vez vinda de fora. Uma reportagem do jornal inglês The Guardian traz casos de pessoas expulsas de restaurantes, lojas e hotéis, e um vídeo que circula na internet mostra três russos impedidos de entrar em uma loja para comprar máscaras.

Na Índia, onde um grupo de quase 180 brasileiros tenta ser repatriado após o fechamento das fronteiras, parte deles também conta ter vivido momentos tensos, especialmente em cidades menores.

A servidora pública Claudia Segobia, 50, foi pressionada para sair do hotel onde estava havia mais de um mês em Vrindavana, no norte do país. “Começaram a me perseguir lá dentro. Fui chamada por três homens da administração, pediram meu passaporte, eu ingenuamente dei na mão deles. Disseram que teriam que entregar o documento à polícia e que viriam me buscar para fazer exame e me colocar em quarentena.”

No canto da foto, aparecem quatro mulheres. Duas delas usam máscara, uma está de costas. Elas vestem túnicas na cor marrom e óculos. Ao fundo, há uma grande entrada, em estilo árabe, em um edifício marrom
Turistas usam máscara em visita a mesquita Jama Majid, em Nova Déli, Índia, durante pandemia de coronavírus - Jewel Samad - 13.mar.2020/AFP

Hoje, ela está na casa de uma amiga. “No caminho para lá, começaram a apontar para mim na rua e a gritar: ‘Corona, vá para casa!’”, lembra. “Descobriram meu telefone, não sei como, e me ligaram dizendo que sabem onde estou e que vão chamar a polícia.”

Em vídeo enviado à Folha, ela mostra um tecido que colocou como proteção na janela do quarto onde está, para não ser vista do lado de fora. “Estou com muito medo, não saio daqui para nada. E a situação tende a piorar. Nenhum relato que eu faça consegue expressar o que estou sentindo. Foi muita humilhação.”

Cláudia diz que informou a embaixada brasileira e que tem recebido suporte do corpo diplomático. “Mas precisamos sair daqui. Espero que algo possa ser feito por nós.”

Em outra pequena localidade no leste da Índia, o fotógrafo Tiago Mendonça, 38, foi expulso com um amigo mexicano que o acompanha em uma viagem. “A dona do hostel começou a nos pressionar para sairmos de lá. Ela estava muito ansiosa, acho que estava sendo pressionada também. Um dia, saímos para comer, e três adolescentes pegaram uma pedra no chão e nos olharam, dizendo: ‘Você não é bem-vindo aqui’”, conta.

Na noite seguinte, alguém jogou uma pedra no telhado do hostel. “Era um paralelepípedo enorme, fez um barulho muito alto.” A dupla saiu da cidade e agora está em um lugar seguro.

“A paranoia está criando um sentimento de repúdio aos estrangeiros. Não os culpo, eles estão com medo. É um problema que está acontecendo no mundo todo, mas as pessoas não deveriam procurar um culpado”, afirma.

Em uma enquete feita por um dos brasileiros que aguardam repatriação na Índia, respondida por 140 pessoas na mesma situação, 23 delas relataram ter sofrido hostilidades por parte da população e 13, por parte da polícia. Ao menos 30% temem que as hostilidades aumentem à medida que forem surgindo mais casos de Covid-19 no país.

Um dos depoimentos reunidos pelo grupo é de uma brasileira que se hospedou na casa de um guru de ioga após seu curso ter sido suspenso. Um grupo de 20 policiais foi até a residência, obrigando todo mundo a ficar de quarentena, e divulgou para a população local que a casa estava infectada por tê-la recebido. “Estamos vendo muitos atos xenofóbicos por autoridades na Índia. Para os mesmos, se você for estrangeiro, é um coronavírus ambulante”, diz o relato.

Até agora, a embaixada na Índia conseguiu negociar cerca de 15 lugares para os brasileiros em um voo da Air France. O valor da passagem, porém, é impeditivo para alguns turistas: entre US$ 1.500 (R$ 7.800) e US$ 2.000 (R$ 10.500). “Normalmente a passagem de ida e volta custa uns R$ 4.000. A maioria de nós não tem condições de arcar com esse valor extra”, afirma Cláudia.

Em nota, o Itamaraty afirmou que a embaixada em Nova Déli e o consulado em Mumbai estão buscando meios de superar as restrições do governo indiano para possibilitar o retorno dos brasileiros.

O órgão diz que tem negociações em curso com companhias aéreas para buscar soluções de repatriamento e que está apoiando os brasileiros com medidas como compra de medicamentos e alimentos para quem precisa, “resgate de brasileiras expulsas de seus hotéis e em situação de vulnerabilidade em cidades próximas a Nova Déli e obtenção de alojamento em local seguro na capital” e “atendimento de brasileiros detidos pela polícia”.

‘Doença de branco’

Em alguns países africanos, viajantes que se sentiam bem recebidos até recentemente relataram uma mudança de atitude da população após a chegada da pandemia ao continente.

A jornalista Marina Pedroso, 27, que faz uma viagem pelo mundo e parou no Quênia durante o isolamento, conta que o primeiro caso que ouviu de constrangimento a estrangeiros foi na Tanzânia.

“Aconteceu com três asiáticas que conheci. Disseram para elas: ‘Corona, volte para seu país’. Aqui no Quênia, depois que descobriram o primeiro caso, comecei a sentir eu mesma essa hostilidade”, conta. “Eles falam ‘hello’; se não dou bola, soltam logo um ‘corona!’. Tenho medo de sair, compro comida no máximo uma vez por semana.”

Marina conta um episódio que aconteceu quando ela estava com uma colega viajante de Hong Kong em um ônibus. “Um homem sentou do lado dela, cobriu a boca e o nariz com a camiseta e começou a falar ‘corona’. Depois o pessoal do ônibus pediu desculpas pelo comportamento dele.”

Em Botsuana para fazer trabalho voluntário, Lucy Mazera, 49, doutora em serviço social, foi outra que notou a mudança de tratamento da população. “Quando vou ao mercado, ficam me olhando como se fosse um vírus. Não chega a ser agressivo, mas percebo que eles têm medo. Já me disseram: ‘good morning, coronavirus’ [bom dia, coronavírus]. Sou loira de olhos claros, acho que eles pensam que sou europeia.”

Lucy afirma, porém, que entende o lado da população. “Não é proposital, é questão de sobrevivência. Os brancos sempre trouxeram doenças para a África.”

Acostumada a ser bem tratada em Gana, onde vive temporariamente, a professora de dança Ana Carolina Ussier, 30, diz que a mudança foi “da noite para o dia”. “A hospitalidade dos ganeses é famosa. Normalmente existe aqui até uma espécie de reverência às pessoas brancas. Com a confirmação dos primeiros casos no país, isso mudou.”

Há cerca de um mês, ela estava passeando com um grupo de brasileiras em um mercado de rua e uma mulher saiu correndo ao vê-las. “Uma vendedora perguntou: ‘Você entendeu o que aconteceu? Ela ficou com medo de vocês, porque coronavírus é doença de branco’.”

A brasileira também ajudou um chinês que está viajando o mundo de bicicleta e não conseguiu nenhum lugar que o hospedasse na cidade.

Em três semanas de isolamento, Ana Carolina só saiu de casa duas vezes. “Peguei transporte público e todas as fileiras lotaram, menos a minha. Eu estava com vontade de tossir, fiquei morrendo de medo.”

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