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Crise pode ser destrutiva para cooperação internacional, diz pai do 'soft power'

Para Joseph Nye, ascensão chinesa, populismo e Trump enfraquecem ordem liberal

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São Paulo

Numa crise global, é cada um por si, como a corrida de países por equipamentos médicos e o fechamento de fronteiras estão mostrando.

Para o cientista político americano Joseph Nye, 83, o cenário representa mais uma ameaça à ordem liberal dominante das últimas décadas, que já vinha sendo posta em xeque pela ascensão chinesa e pelo aumento do populismo.

O professor americano Joseph Nye durante debate no Fórum Econômico Mundial, na Suíça
O professor americano Joseph Nye durante debate no Fórum Econômico Mundial, na Suíça - Rèmy Steinegger - 23.jan.14/Fórum Econômico Mundial/Divulgação

“Se a situação continuar a piorar, isso será muito destrutivo para a ideia de cooperação internacional”, afirma, em entrevista à Folha.

Professor emérito da Universidade Harvard, Nye (pronuncia-se “nái”) ganhou fama acadêmica ao introduzir um dos conceitos mais usados atualmente nas relações internacionais, o do “soft power”, ou poder suave.

Segundo essa terminologia, a influência de um país não se mede apenas por sua capacidade militar ou econômica, mas também pela empatia gerada pelos valores que projeta.

Nesse sentido, para Nye, os erros cometidos pelo presidente americano, Donald Trump, na atual crise têm minado o soft power americano.

Já a China procura se recuperar nesse campo com a chamada “diplomacia da máscara”, em que doa equipamentos a países afetados, após ter sido criticada por ter escondido o coronavírus em seu início.

Autor de 18 livros, ele acaba de lançar “Do Morals Matter?” (“A Moral Importa?”, ainda sem lançamento no Brasil), em que analisa a política externa dos presidentes americanos a partir da Segunda Guerra. Para ele, a de Trump é, de longe, a mais isolacionista entre os 14 ocupantes da Casa Branca desde então.

O sr. diz em seu novo livro que os EUA sempre se enxergaram mais como uma causa do que como um país. Como está essa causa no governo Trump? O que temos visto é uma abordagem sobre os interesses americanos muito estreita por parte dele. Outros presidentes, como [Frankin] Roosevelt, [Harry] Truman ou [Dwight] Eisenhower tinham visão muito ampla. Cada presidente tem que pensar nos interesses de seu país, como [Emmanuel] Macron pensa na França primeiro e, imagino, [Jair] Bolsonaro diga “Brasil primeiro”.

O ponto chave não é colocar os interesses de seu país primeiro, mas como definir esses interesses. Um bom exemplo é o Plano Marshall. Truman apoiou porque era do interesse americano evitar que o comunismo dominasse a Europa. Pensou no interesse nacional de maneira ampla. Trump é diferente. Ele pergunta: “Qual o benefício deste acordo comercial em particular para nós?”. Se pegarmos os 13 antecessores que menciono, Trump é de longe o mais estreito de todos.

O livro vai de Roosevelt até Trump. Como o sr. compara a liderança de um durante a Segunda Guerra à do outro ao lidar com o coronavírus? Roosevelt teve que fazer acordos e coisas que não foram perfeitas para vencer a guerra. Mas ao mesmo tempo desenvolveu em 1944 as instituições de Bretton Woods [FMI e Banco Mundial]. E em 1945 implantou as bases da ONU. Ao mesmo tempo em que estava vencendo a guerra, estava desenvolvendo um arcabouço multilateral para depois. Trump se move na direção oposta, para longe do multilateralismo.

O sr. diz no livro que a ordem liberal internacional está sob risco em razão da ascensão da China e do populismo. A crise do coronavírus acelera esse processo? O populismo e a ascensão chinesa têm minado o liberalismo. A China tem interesse numa moldura de instituições baseadas em regras, porque ela se beneficia de comércio e tem interesse em discutir mudança climática, por exemplo. Quer mudar o campo de jogo para conseguir mais, mas não quer destruí-lo.

No caso do populismo, há uma reação contra alguns fatos da globalização, como desemprego e o fato de fábricas fecharem e levarem sua produção para outros países. Se você olha como as economias modernas se tornaram dependentes de comércio e de cadeias de suprimento globais, podemos até ver um recuo no grau de globalização, mas não se pode imaginar voltar a zero. A situação está mudando, está enfraquecida, mas não será destruída.

A China tem doado material, cedido especialistas e médicos para outros países, num processo que tem sido chamado de “diplomacia da máscara”. A China finalmente entendeu o que é soft power? A China começou a se interessar por soft power em 2007, quando [o então dirigente] Hu Jintao disse numa conferência do Partido Comunista que era preciso investir mais nesse aspecto. Eles têm tentado melhorar, mas não têm conseguido se sair muito bem.

Há um índice publicado em Londres, o Soft Power 30, e, dos 30 países pesquisados, a China ocupa a posição 27. Uma das razões pelas quais os chineses estão engajados nessa campanha de propaganda, nessa chamada "diplomacia da máscara", é tentar restabelecer seu soft power, por causa da maneira como lidaram com o coronavírus nos primeiros dois meses.

Quando o sr. criou esse conceito, imaginou a possibilidade de um país autoritário como a China exercê-lo? Soft power é o poder de conseguir o que você quer por meio de atração, em vez de coerção. A China pode ser atraente para países como o Zimbábue, que tem um passado autoritário. Mas não será para a Suécia ou a Noruega. Não é contraditório dizer que um país autoritário tem soft power, porque aos olhos de algumas pessoas, autoritarismo é atraente.

Qual aspecto vai se sobressair no caso da China? A negligência no começo da crise ou a eficiência ao combatê-la? Ainda estamos no primeiro ato de uma peça com muitos atos. Nesse estágio, a reputação da China é uma mistura das duas coisas. O sistema autoritário com censura piorou as coisas, mas os controles autoritários, como o fechamento de Wuhan, conseguiram lidar com problemas.

A resposta à crise tem incluído fechamento de fronteiras, corrida por equipamentos médicos e atos de força por parte dos EUA. Como o sr. acha que isso vai impactar a ideia de valores comuns e cooperação internacional? Se a situação continuar a piorar, isso será muito destrutivo para a ideia de cooperação internacional. Em 1918, a pandemia de gripe [espanhola], que matou mais pessoas do que a Primeira Guerra, veio em várias ondas. Se as pessoas entenderem que ondas futuras podem ocorrer, perceberão que precisam fazer muito mais para cooperar internacionalmente.

Como o soft power dos EUA sairá desse processo? Se você olhar as pesquisas e comparar o soft power americano sob Obama com o sob Trump, já houve um declínio sério. Certamente, isso foi prejudicado pela maneira incompetente como Trump respondeu ao coronavírus. Mas sou otimista de que haverá uma recuperação, porque isso depende muito da sociedade civil americana, que continua forte.

O sr. diz no livro que as organizações internacionais têm mais apoio entre o público em geral do que entre as elites. O sr. acha que a imagem da ONU e da OMS vai melhorar nos EUA? A OMS não foi muito bem nos estágios iniciais. Seguiu mais ou menos a linha da China e fracassou ao não alertar de maneira apropriada o resto do mundo sobre a seriedade da crise. A OMS tem de ser reformada, mas isso é diferente de dizer que não deveríamos ter uma organização multilateral como ela.

Qual será o impacto da crise para a eleição americana? Se você tivesse me perguntado seis semanas atrás, eu diria que seria provável Trump ser reeleito. Mas a forma como ele lidou com o coronavírus pode significar que seja derrotado.

Qual a imagem global de Bolsonaro hoje? Muitos americanos o veem como o Trump brasileiro, porque tem várias características similares, como a definição estreita de interesse nacional. Não acho que isso tenha mudado por causa da crise do coronavírus. Como Trump, ele estava em negação nos primeiros estágios da crise, o que levou ao atraso na resposta apropriada. O Brasil é um país amplamente admirado por sua cultura e suas atitudes, e isso se reflete na sociedade civil, que se mantém robusta apesar dos problemas atuais.

O mundo será muito diferente depois dessa crise? Gostaria de acreditar que sim, mas temo que veremos a continuação de tendências anteriores. Em 1918 tivemos a gripe, que foi extraordinariamente danosa, mas não mudou o mundo. O que mudou foram a Primeira Guerra e o crash de 1929. Todo mundo diz que essa pandemia terá um efeito grande. Pode ser, mas às vezes grandes eventos não têm grandes efeitos. Gostaria de pensar que aprenderemos uma lição em cooperação, mas isso pode ser muito otimista.

Algumas pessoas estão prevendo o fechamento de fronteiras, aumento da xenofobia, até dizem que o futuro da União Europeia está sob risco. Isso tudo pode acontecer? Fazer previsões agora é arriscado, porque novas coisas podem nos surpreender. Mas não acho que mudará o equilíbrio global de poder. Não acho que a crise de agora seja tão ruim quanto a dos anos 1930, por exemplo.


Joseph Nye, 83

Graduado em ciência política pela Universidade Princeton, com PhD pela Universidade Harvard. Ocupou diversas funções no governo americano, entre elas presidente do Conselho Nacional de Inteligência (1993-94) e secretário-assistente de Defesa (1994-95); é professor emérito de Harvard. É também autor de 18 livros, entre eles “Power and Interdependence” (1977), “Soft Power, The Means to Success in World Politics” (2004) e “Do Morals Matter?” (2020).

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