Descrição de chapéu Coronavírus Venezuela

Desconfiança de dados oficiais da pandemia joga médicos venezuelanos na escuridão

Profissionais de saúde colocam em dúvida números de infectados, mortes e adesão à quarentena

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Buenos Aires

"Você pode me ligar em uma hora? Aí acho que terei saído dessa fila do posto de gasolina", diz a médica María Graciela López, presidente da Sociedade Venezuelana de Infectologia.

Uma hora depois, uma nova ligação, e a resposta era a mesma. "Ainda estou na fila, acredita?"

O país que viveu por décadas das riquezas do petróleo vem passando, entre outros problemas, por uma falta crônica de combustível e pela dilapidação do setor durante a ditadura de Nicolás Maduro.

Nesta semana, houve filas como as que López enfrentou em Caracas em muitas outras cidades do país.

"Podemos começar por aí para falar de medicina", afirma ela. "O governo diz que há uma adesão de 95% à quarentena e que não há aglomerações. Mas e essas filas? Com ambulantes passando entre os carros, pessoas fora deles, conversando, ninguém de máscara. Já está aí um lugar propício para o contágio."

Médica cubana durante inspeção na favela de Lidice, em Caracas, em meio à pandemia de coronavírus
Médica cubana durante inspeção na favela de Lidice, em Caracas, em meio à pandemia de coronavírus - Manaure Quintero - 9.abr.20/Reuters

A chegada do coronavírus ao país é só mais uma das más notícias para a área de saúde na Venezuela. A médica cita, além da falta de hospitais preparados para suportar a pandemia, o ressurgimento de doenças que haviam sido erradicadas do país, como sarampo, difteria e febre amarela.

O regime venezuelano divulga números da pandemia que, se comparados a outros países da região, soam irreais. Segundo o governo, seriam 204 casos confirmados e nove mortes, além de 111 pacientes recuperados. A vizinha Colômbia havia registrado, até a noite de sexta-feira (17), 3.233 casos e 144 mortos.

A jornalista independente Naky Soto, que relata o dia a dia do país durante a crise do coronavírus no blog El Zaperoco de Naky, diz que o fato de os dados oficiais quase equipararem a quantidade de recuperados e de infectados parece "uma piada de mau gosto".

Para o epidemiologista Mariano Fernández, os números não podem estar corretos. "Nem os do governo nem uma estimativa que eu possa fazer, porque não tenho dados suficientes, tampouco temos capacidade de fazer testes ou os hospitais de identificar se uma pneumonia é causada pela Covid-19 ou não", diz ele.

Por outro lado, relata Fernández, não há na Venezuela, ao menos até o momento, cenas como as que se vê em Guayaquil, no Equador, em que corpos passam dias dentro de casas ou até nas ruas devido ao colapso dos sistemas de saúde e funerário.

O médico afirma acreditar que o país caribenho, em estado de emergência desde março, ainda está numa fase inicial da doença e que, por estar mais isolado devido à crise social e econômica, recebe menos estrangeiros, ainda que ao menos 2.000 refugiados na Colômbia tenham retornado desde o início da crise.

A chegada de viajantes de países afetados pela pandemia é um dos motores da disseminação do vírus.

"Mas é inevitável que a curva comece a subir, porque nossa estrutura é muito pior do que a de Guayaquil. Temos, no entanto, coisas em comum com essa cidade, como a informalidade e o fato de as pessoas não estarem bem informadas sobre o vírus", diz ele.

Na Venezuela, segundo a ONG Provea, os informais formam 75% do mercado de trabalho.

Julio Castro Méndez, infectologista da Policlínica Metropolitana, corrobora a tese de que o regime tem divulgado números maquiados. "Não é informação epidemiológica, e sim propaganda."

Ele, que dirige uma liga independente de médicos de todo o país, a Médicos por la Salud, afirma que "tampouco pode fazer cálculos, por falta de informação".

O órgão liderado por Méndez serve para trocar dados, como informações sobre um medicamento ou como fazer chegar determinada ajuda.

A rede, diz ele, vem ajudando no tratamento de casos de câncer, difteria, sarampo e na assistência a maternidades. Ainda que haja muita solidariedade entre os profissionais, o médico ressalta que "boa vontade não produz unidades de UTI nem respiradores". "E é disso que vamos precisar, e logo."

A medicina venezuelana já foi referência na região. Num passado não muito distante, era comum que vizinhos colombianos, com a estrutura dilapidada pelas guerras entre guerrilhas e Exército, fossem se consultar ou realizar cirurgias em clínicas e hospitais do país caribenho.

O mesmo ocorria com pacientes equatorianos e das Guianas.

Os integrantes da Assembleia Nacional, liderada por Juan Guaidó e de maioria opositora, têm divulgado um boletim diário da situação do país em termos de infraestrutura para combater a pandemia.

Para o órgão, considerado o único legítimo na Venezuela por grande parte da comunidade internacional, o regime mente tanto sobre a adesão da população à quarentena quanto sobre a ajuda distribuída a quem está obrigado a ficar em casa.

"Sem gasolina e sem comida, os cidadãos têm de sair às ruas para buscar alimento para as famílias. As manifestações de rua, que são perigosas devido ao risco de contágio, têm ocorrido com frequência e são ignoradas pelo governo", diz Guaidó.

"Os estados de Portuguesa, Barinas, Anzoátegui e Miranda estão sem serviços básicos, sem água, sem atenção médica, sem receber cestas básicas para que a quarentena seja possível. No resto do país, estão em situação parecida os estados de Falcón, Lara e Zulia."

Por outro lado, segundo Maduro, há 23,5 mil leitos disponíveis no país, onde foram habilitados 46 hospitais "sentinelas", sob supervisão militar, para atender aos pacientes com coronavírus.

Mas segundo especialistas independentes ouvidos pela agência de notícias AFP, há apenas 206 leitos de cuidados intensivos na Venezuela, metade dos quais em Caracas.

Desde 2014, a Venezuela deixou de divulgar dados epidemiológicos do país. A OMS (Organização Mundial da Saúde), porém, vem alertando para o aumento significativo de casos de malária, difteria e sarampo.

Entre 2008 e 2015, por exemplo, havia o registro de apenas um caso de sarampo na Venezuela. Desde junho de 2017, foram contabilizadas 9.300. As estimativas da OMS são realizadas por meio de entrevistas a distância com médicos independentes.

A subdiretora da divisão das Américas da ONG Human Rights Watch, Tamara Taraciuk, alerta para a necessidade de o país aceitar ajuda humanitária o mais rapidamente possível.

"Os médicos venezuelanos já trabalham praticamente só com as unhas, não podem dar conta do que vem aí com o coronavírus. Nossa principal preocupação é iniciar uma campanha pelo acesso à água limpa, que é a base de uma estratégia de prevenção da pandemia. Estamos ainda nesse nível", afirma.

A partir de conversas com médicos locais, Taraciuk diz que muitos têm levado luvas artesanais e desinfetantes comprados por eles mesmos no mercado negro. Outros relatam ainda a fabricação caseira de suas próprias máscaras e o temor de que sejam infectados devido à falta de estrutura.

"É muito difícil fazer estimativas do impacto da pandemia por conta da falta de transparência do governo. Além do que, quem divulga informação está sendo preso ou perseguido. A quarentena tem sido usada como desculpa para prender ainda mais gente de modo arbitrário", completa.

A ONG Foro Penal registra que houve 61 detenções sob pretexto de violação da quarentena. Nove delas foram de jornalistas que teriam divulgado casos de coronavírus por meio de sites ou blogs independentes.

O caso mais recente foi o de Darvinson Rojas, detido pela Faes (Força de Ações Especiais da Policía Nacional) por ter publicado informações sobre a pandemia. Ele está preso e responde a processo por instigação pública e incitação ao ódio.

"Antes lutávamos apenas contra a ditadura, agora temos a ditadura e o vírus", afirma o jornalista Luis Carlos Díaz, que também já foi detido e agora trabalha em casa.

Para completar o triste quadro, a Federação Médica Venezuelana informa que 30 mil médicos emigraram do país desde 2014.

Erramos: o texto foi alterado

A Federação Médica Venezuelana informa que 30 mil médicos emigraram do país desde 2014, e não imigraram. O texto foi corrigido 30 mil profissionais emigraram do país, e não imigraram.

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