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Diário de confinamento: 'A cidade das crianças'

Em teoria, somente um adulto pode sair com até 3 crianças, mas o que se vê parecem famílias inteiras

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Barcelona

Dia #44 - Domingo, 26 de abril. Cena: pensando em como descolar um filho (brincadeeeira).

Enviada lá do interior de São Paulo, do outro lado do Atlântico, uma mensagem da minha tia me faz rir.

"Olha! Tô fazendo máscaras pra passar o tempo. Já acabei com fronha, pano de prato, canga, não dá pra sair pra comprar tecido, né? Logo, logo vou começar a cortar lençóis... mas é um bom passatempo, hein!"

E manda umas fotos de máscaras em diferentes cores pastel, inclusive uma com uma charmosinha borda quadriculada tipo Vichy (aquele padrão xadrez naïve de toalha de piquenique, roupa da Dorothy no Mágico de Oz e avental de cozinha da vó).

Estou na varanda de casa torrando no sol de domingo. De biquíni (e olha que faltam quase dois meses para o verão).

O calor ardido da primavera mediterrânea não deixa muito a dever ao nosso aí. Como brasileira, fico até decepcionada. Nem posso pleitear nossa supremacia na categoria Calor Tropical Desgraçado, chocando as gentes espanholas derretidas dizendo, "isso não é nada, no Brasil é muito pior!!!". Não. Aqui pode ser cruel, creiam-me.

Escuto. O que é isso?!

"Maaaaaaãaaeeeee!" Risos. Pneu de bicicleta com rodinha rolando no asfalto. Gritos agudos. Voz de adulto por cima: "Aí não, espera!". Estico o pescoço, apuro o ouvido, repito mentalmente: ma-ma-mas-o-que-é-isso?!

Meu prédio dá pra um cruzamento algo movimentado em dias normais. O ruído de tráfego costuma(va) ser meio infernal. Mas hoje, domingo, só se escuta um uivo coletivo, como uma maré de alta frequência que se estende pra além do horizonte, além da minha esquina, muito além dos edifícios visíveis: O Clamor das Crianças!

Com todas as minhas pseudodivagações lúdicas sobre o futuro distópico da humanidade, não antecipei essa súbita transformação sonora do espaço urbano. Foi um choque. Hoje é o primeiro dia do desconfinamento infantil na Espanha. RIP, silêncio dos confinados.

Me debruço sobre a sacada. Há pequenos com máscaras, famílias espalhadas, aparentemente tudo certo.

Até que volto pra internet e —novo choque.

Vídeos e fotos feitos em toda a Espanha circulam nas redes sociais e mostram multidões de famílias em algumas avenidas e praças principais. MULTIDÕES.

crianças correndo em barcelona
Crianças brincam nas ruas de Barcelona após o relaxamento permitido na Espanha, neste domingo (26) - Josep Lago/AFP

No Passeig de Gràcia, uma das maiores vias públicas de Barcelona, geralmente tomada por turistas loucos por Gucci e selfies diante de prédios do Gaudí, era tanta gente que simplesmente não sobrava espaço para manter as regras de distanciamento social.

Já em Bogatell, uma das principais praias da cidade, fotos mostram a extensa fileira de bancos de cimento diante da orla (com espaço entre si de menos de 20 cm) overtomada por gente, quase todos sem máscaras ou qualquer outro tipo de proteção. Quase que se veem mais adultos que crianças, conversando animadamente entre si a distâncias nada puritanas.

"Espalhando coronavírus na Espanha", acusa um internauta. "Onde está a polícia?", pergunta outra. "É o primeiro dia... Precisamos melhorar muito." "Por isso é que não podemos levantar as restrições tão cedo: cria uma falsa sensação de segurança!", diz um terceiro. “Respeitem esses pais, que aguentaram como puderam tantos dias em casa”, pondera outra. Quase todos sem filhos —imagino.

Meu namorado me manda um vídeo circulando entre seus amigos (alguns deles, também pais), que discutem acaloradamente sobre o que veem: numa praia próxima, de novo, muita gente —inclusive, muito mais adultos do que crianças.

Em teoria, somente um adulto pode sair com até três crianças. Mas o que se vê (em alguns lugares específicos de algumas cidades) parecem famílias inteiras, pai-mãe-avós-amantes-vizinhos-chegados.

Ora, algo na proporção adulto X criança aparentemente não está batendo. Pergunta óbvia e ululante: estariam alguns adultos aproveitando pra abusar da situação?

Outra pergunta: devemos nos preocupar?

Nas últimas 24 horas, foram registrados 288 mortos por coronavírus na Espanha. O índice de contágios (oficial) passou dos 35% logo antes do estado de alarme para 0,8%.

O governo anunciou que liberará esporte (solitário) e passeios na rua a partir de 2 de maio —se o comitê de especialistas sanitários deixar.

Até lá, meu compi de apartamento, um cara boa praça com estatura módica, já propôs: "Por uma modesta quantia, se você quiser, eu me disfarço de criança pra gente dar um rolê!".

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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