Diário de confinamento: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'

'Médicos dizem que a diminuição no ritmo de hospitalizações se deve à saturação dos centros de cuidados intensivos'

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Barcelona

Dia #19 – Barcelona – Quarta, 1 de abril. Cena: chove. Muito.

"Hoje, vamos fazer um arroz com sobras."

O basco Karlos Arguiñano é um dos apresentadores de programa de culinária mais famosos da Espanha. A receita do dia, diz, pode levar o que tiver na geladeira. "Afinal, todos compramos meio caoticamente durante a quarentena, né?", ou algo assim. Hmmm.

Arguiñano fala paca e esses dias deu até suas duas pesetas de considerações pseudoterapêuticas sobre a crise, recomendando doses homeopáticas de coronanotícias para não "terminar enchendo a cabeça". E sugeriu jogos de tabuleiro que aqui são populares, tipo ludo ou "parchís" (Sabiam que é inspirado em um jogo indiano medieval? Nem eu) ou o jogo da "oca" (ganso).

Idosa, de cabelos brancos, usa mascara branca e roupas pretas enquanto sai da porta de uma loja. As paredes da loja são marrom-claro e as vitrines tem vidros expondo doces e alimentos. Há adesivos brancos nos vidros
Idosa usa máscara para comprar comida em Barcelona, durante quarentena contra o coronavírus - Nacho Doce - 13.mar.2020/Reuters

O jogo da oca é um curioso objeto cênico da vida doméstica espanhola. É tão icônico que foi até tema de programa de tevê. Existem mil versões distintas, mas todas trazem desenhos de bichos, objetos e outros seres num caminho em forma de caracol (com gansos, claro).

As regras são simples. Se você cai numa casa onde há um ganso, tem que dizer: "De oca a oca y tiro (avanço) porque me toca", avançar até o ganso seguinte e jogar os dados outra vez. O ganso é sorte grande —ou não.

(Não confundir com o Untitled Goose Game, videogame tipo "sandbox" ou "aberto" sobre as prosaicas aventuras de um ganso traquinas (!) que virou febre nos últimos meses. Com trilha sonora adaptada de Debussy (!!), o ganso vai grasnando e fazendo gansices numa pequena vila, tudo com um desenho naïf que deixaria Arguiñano e coronaconfinados felizes.)

O jogo da oca provavelmente nasceu há muuuuito tempo, com os gregos, mas a história oficial situa sua versão "moderna" no século 19. Dizem também que Felipe 2° (1527-1598) da Espanha, "El Prudente", tinha um, presente de Francisco 1° de Médici. E que os templários medievais criaram sua versão particular, com a concha Fibonacci-perfeita do molusco "Nautilus" de tabuleiro, para transmitir o código cifrado de suas comunicações ao longo do Caminho de Santiago.

Hoje a oca me fez pensar no jogo da vida, com sua narrativa de sonho americano dos 1960s e seus bonequinhos "gender-strict" rosa e azul; e num outro jogo de tabuleiro lindo chamado ladrões no bosque (não a série...), uma minilenda nostálgica entre yo y meus irmãos.

Longe dos tabuleiros, a Vida Por Aqui vai registrando uma sucessão de recordes negativos. A Espanha superou os 100 mil casos de contágio por Covid-19. O número de mortos nas últimas 24 horas segue a tendência máxima dos últimos dias. A Espanha já responde por um quinto das mortes no mundo por coronavírus. Paralelamente, as hospitalizações cresceram 5%, um número considerado baixo pelas autoridades sanitárias.

Mas é um erro: médicos e outros profissionais de saúde entrevistados em vários meios de comunicação argumentam que a aparente diminuição no ritmo de hospitalizações se deve muito mais à saturação absoluta dos centros de cuidados intensivos do que a uma queda real no número de casos graves.

Hoje, o ministro do Consumo, Alberto Garzón, disse que estão sendo tomadas medidas para controlar a especulação das funerárias. Segundo ele, algumas “se aproveitaram desta pandemia para elevar os preços de forma indiscriminada, em alguns casos adicionando até 2.000 euros à tarifa” (cerca de R$ 11.500).

Enquanto isso, os confinados espanhóis já inventaram a versão 2.0 do jogo da oca. Chama-se CORONAOCA e, no lugar de bichos, cada casinha traz uma tarefa física para espaços diminutos, de abdominais a equilíbrio-de-vassoura e lançamento-de-meia-na-lata-de-lixo. Só não pode cair na casa do vírus. Aqui, teremos tempo para praticar.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.


Leia a parte 1 do diário de confinamento em Barcelona: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'

Leia a parte 2 do diário de confinamento em Barcelona: 'Teste, só para pacientes internados'

Leia a parte 3 do diário de confinamento em Barcelona: 'A vida vista de cima'

Leia a parte 4 do diário de confinamento em Barcelona: 'Panelaço contra o rei'

Leia a parte 5 do diário de confinamento em Barcelona: 'O perigo mora em casa'

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Leia a parte 15 do diário de confinamento em Barcelona: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'

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​Leia a parte 17 do diário de confinamento em Barcelona: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'

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