Dia #23 – Barcelona – Domingo, 5 de abril. Cena: alguém cantarola "La Traviata" à distância, a voz sobrevoando pássaros.
As primeiras quarentenas de que se tem notícia no mundo pré-moderno eram, na realidade, trintenas.
O primeiro registro da palavra pode ter se dado no super movimentado porto mediterrâneo de Ragusa, atual Dubrovnik, Croácia, então sob controle de Veneza, no século 14.
Em plena era da peste, era preciso isolar os navios que chegavam de áreas afetadas.
A peste bubônica abalou a Europa em ondas ao longo de todo um século, e estima-se que em apenas três anos (1347-1350) matou um terço da população continental.
Em algum momento nesse período, a trintena passou a 40 dias.
Existem mil teorias para isso. No plano prático, alguém concluiu que 30 dias era pouco.
No plano transcendental, o céu é o limite. A Bíblia era a fonte do momento e estava cheia de referências ao número como um intervalo de tempo purificador —Jesus e seu jejum de 40 dias no deserto, Moisés no Monte Sinai por 40 dias recebendo os Dez Mandamentos, Noé e a chuva de 40 dias e 40 noites etc.
Não só: para a Cabala, 40 representa os quatro cantos do mundo, com dez "sefirots" (atributos místicos) cada. No judaísmo, 40 também é um intervalo-chave para transformações e superações (inclusive, dizem os textos oficiais que 40 anos é a idade de "binah", o entendimento profundo).
Maomé, profeta do Islã, recebeu sua primeira revelação mística aos 40 anos, com uma visita do anjo Gabriel durante um retiro espiritual. Yogi Bhajan, guru da yoga kundalini, recomendava uma prática mínima de 40 dias para romper maus hábitos. Franz Ferdinand cantava "oh lalalala, forty feet remaaaain".... enfim.
Simbolismos elocubratórios à parte, a palavra "quarentena" é hoje tão comum que a gente nem pensa. Eu, pelo menos. Hoje mesmo escutei: a médica do hospital que recebeu os pais de um amigo, infelizmente internados com coronavírus, recomendou "uma quarentena de 14 dias" a todos os que entraram em contato com eles.
É isso: independentemente de duração, todos nós sabemos que a palavra serve para se referir a um período de observação e isolamento, preventivo ou não, seja de 14 dias ou 60.
Pelo terceiro dia consecutivo, a Espanha vai reduzindo o número diário de mortos. Fechou o domingo com a cifra mais baixa dos últimos dez dias, 674.
A prorrogação do estado de alarme por mais 15 dias, até 26 de abril, tem apoio quase unânime dos estados e da oposição —mas com ressalvas.
O presidente da Catalunha, Quim Torra, queixou-se novamente neste fim de semana da falta de materiais prometidos pelo governo central, acusando-o de não haver enviado até agora nenhum dos tais testes rápidos tão propalados nos últimos discursos.
"Sem um plano de testes massivos, sem exames nem medicação suficiente, e com a atual sobrecarga nos hospitais, é necessário seguir confinados totalmente", alerta, ou "será uma temeridade".
A percepção geral é de que, sim, estamos nos aproximando de uma estabilização, mas afrouxar as medidas de confinamento agora poderia botar tudo a perder, trazendo um novo pico de contágios. A discussão da semana vai girar em torno de medidas de impacto de médio prazo na economia e na volta gradual à normalidade.
Esta semana nos esperam aqui na Europa algumas movimentações que ajudarão a delinear o futuro próximo da segunda etapa da crise —a reconstrução, sobretudo econômica.
Na terça, haverá uma reunião do Eurogrupo (ministros da Economia e Finanças dos países-membros da União Europeia) para avançar na discussão de um plano de intervenção e socorro entre países.
A Espanha leva já 24 dias em confinamento domiciliar. Chegando ao 26 de abril, teremos um total de 44 dias de lockdown —por enquanto. Segundo alguns especialistas, idealmente a conclusão desta quarentena crítica que vivemos deveria se dar por volta do final de maio.
O que me faz lembrar do significado de "40 dias e 40 noites" —nas estórias de antigamente, também era sinônimo de "muito, muito tempo"...
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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