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Diário de confinamento: 'O início da reconstrução'

Começam nesta semana as negociações para um pacto nacional pós-crise

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Barcelona

Dia #38 – Segunda, 20 de abril. Cena: chove, chove, chove.

Acho que é hora de comentar sobre os Pactos da Moncloa —penso, enquanto autocontemplo minha difícil digestão das notícias do dia.

Tem segunda-feira que é assim. Inclusive durante uma quarentena prolongada. O ciudadano confinado pode ter a sensação de estar flutuando numa nave espacial em zero gravidade, segunda = domingo = terça = anteontem, mas o ritmo lá fora (meus olhos passeiam até a janela: nublado, o branco fantasmagórico emoldurado de garoa e skyline cor de terracota barcelonês)… o ritmo lá fora ainda pulsa taquicárdico a cada início de nova semana.

Nesta segunda (20), com a primeira crucial reunião entre o governo e o principal partido da oposição, o PP. Sem clima de amizade.

Idosa e enfermeiras olham pela janela de uma casa de idosos em Barcelona, na Espanha, durante pandemia do novo coronavírus no país
Idosa e enfermeiras olham pela janela de uma casa de idosos em Barcelona, na Espanha, durante pandemia do novo coronavírus no país - Nacho Doce - 1.abr.20/Reuters

As negociações para a reconstrução serão longas. A proposta inicial era abranger quatro frentes (economia, bem-estar, saúde e Europa) para elaboração estratégica entre maio e junho, em rodadas com diversos setores.

O plano seguirá, mas arbitrado pelo ambiente armagedom do Congresso (a pedido do PP, que sabe ter ali uma arena favorável).

A sexta semana de lockdown também começa com informações (flutuando no vazio, no vazio) como a divulgação de um estudo do Banco da Espanha prevendo que a recessão pode significar, no melhor dos casos, uma perda de 6,6% do PIB em 2020, e, no caso de um confinamento que se estenda até 12 semanas, chocríveis 13,6%.

Isso é mais do que a aposta do FMI para a economia espanhola (8%), e muito mais do que a média mundial prevista (3%). Mas não importa. Para nós, astronautas domésticos com a conta no vermelho, os números são apenas números; quando se desliga a tevê, vem o silêncio. Ouve?

Mas eu disse que ia comentar sobre os tais Pactos da Moncloa.

Nas últimas semanas, os “novos Pactos da Moncloa" se transformaram na principal grife do discurso de reconstrução do governo.

O nome é uma referência aos originais Pactos da Moncloa de 1977, que aconteceram após a queda da ditadura franquista como preâmbulo de uma nova etapa democrática do país e abriram caminho para a Constituição de 1978.

O pacote de medidas era vastíssimo e abrangia reformas na política fiscal e a regularização de temas díspares, mas prementes, como o direito à associação sindical e política, liberdade de imprensa, descriminalização do adultério e legalização dos anticoncepcionais (puxa, lágrimas).

Por outro lado, os Pactos originais também significaram, em letras miúdas, diminuição de salários, criação de trabalhos temporários (até hoje, uma questão crítica espanhola, com a média mais alta da Europa) e carta verde para demitir sem necessidade de justa causa (o chamado "despido libre") até 5% dos empregados de cada empresa, instaurando um clima generalizado de incerteza em relação ao futuro, além de perda retumbante de poder aquisitivo entre as classes trabalhadoras.

A Espanha atravessava então uma inflação de mais de 26%, herança da crise do petróleo de 1973. Os Pactos da Moncloa são entendidos até hoje como um superpacote de medidas e acordos colossais que ajudaram a levantar um país surrado pela ditadura e pela crise econômica.

Motivos pelos quais a escolha da alcunha “novos Pactos de la Moncloa” para o plano de reconstrução pós-coronavírus espanhol gera certa controvérsia em alguns recantos políticos.

“Os Pactos da Moncloa foram uma transição de regime para a democracia europeia, mas nós já estamos em uma democracia”, queixou-se há duas semanas Pablo Casado, líder do PP, que chamou a escolha do nome de um “engodo”. Não por acaso, o termo vem sumindo um pouco dos noticiários e discursos oficiais nos últimos dias.

“O perigoso seria que esses pactos levassem a uma mudança encoberta de regime”, criticou Casado, em referência ao medo da oposição de que a crise encubra ou justifique sobremandos centrais.

Trivia: o PP é filhote histórico da coalizão salva-vidas de direita que nasceu exatamente durante a supracitada transição democrática espanhola.

No fim dos anos 1970, o social-democrata PSOE liderava a oposição. Agora, em parceria com a polêmica coalizão de esquerda Unidas Podemos (um dos objetos preferidos do bullying da oposição no momento), deve pilotar a nave.

Sejam Pactos da Moncloa ou bananinhas flamencas, o importante é que as forças políticas possam superar suas diferenças semânticas e articular um plano que funcione. O país, nós, vamos precisar.

O que me faz recordar o que me aconselhou um psicólogo espanhol quando eu passava por uma crise pessoal braba. Ele tinha esculturas de sapos amazônicos na mesa de consulta, eu lembro. “Susssana”, disse, “durante uma crise, mais importante do que saber o que fazer... é ter calma”. Ou pressa, mas com mindfulness.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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