Diário de confinamento: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'

O repetitivo trajeto quarto-sala-banheiro-varanda amplifica a sensibilidade ao detalhe

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Barcelona

​Dia #29 – Barcelona – Sábado, 11 de abril. Cena: acendendo uma vela de lavanda.

Jesuiz (no pun intended), estamos na Semana Santa!

Não sou católica. Não sou nada. À parte isso, tenho em mim todas as crenças do mundo.

Pedrinhas e cristais. Pau santo, por via das dúvidas. Que não gosto de incenso. Viro os chinelos antes de dormir e fecho a porta do armário.

Nunca se sabe.

A Sagrada Família é vista de baixo. com um céu azul. A sombra de uma mulher aparece em frente a igreja
Mulher caminha em frente à Sagrada Família, em Barcelona, durante quarentena contra o novo coronavírus no país - Pau Barrena - 10.abr.2020 /AFP

Tenho muita memorabilia, talismãs ou, como direi, cacarecos espirituais, muitos deles presentes de pessoas especiais (por sorte, não poucas).

Em meu semialtar ecumênico, um buda de pedra adotado em um mercado em Siem Reap, no Camboja, preside uma congregação que inclui um saleiro chileno em forma de personagem mapuche, uma pomba de cerâmica, uma bolota de castanha, um maneki-neko (gato da sorte japonês), uma lanterna infantil que projeta fotos de animais selvagens, caleidoscópio, óculos 3D de papel e celofane azul-e-vermelho, pato de borracha, um cordeirinho de gesso tocando violino...

Qual é a importância das pequenas coisas, e qual é o tamanho das pequenas coisas em nossas vidas confinadas?

Em casa, o repetitivo trajeto quarto-sala-banheiro-varanda amplifica a sensibilidade ao detalhe. O pó no canto da cozinha é mais evidente, o vinco na cobertura do sofá e as orquídeas abrindo uma-a-uma, o movimento das pétalas reverberando primaveras no ar da sala.

O convívio também é âmbito de pactos e explorações territoriais inéditas. Os sentimentos à flor da pele ou enevoados, o companheirismo. Todo dia na hora de comer vemos as notícias. Todo dia de manhã fazemos exercício com vídeos do YouTube. "Kickboxing às 11h na sala 1", anuncia meu compi de apartamento, referindo-se à única sala de casa.

E a solidão. Eu tenho uma tia peruana que se chama Soledad. Sempre achei bonito. Ela comia pimentas dedo-de-moça cruas, um feito que eu considero assombroso.

Por sorte, tenho em casa domínio quase absoluto do escritório, onde montei um QG com abundantes instrumentos musicais, livros e aparatos eletrônicos. E post-its, que eu tenho mania de post-its. É daqui que escrevo neste exato momento, com um majestoso cobertor nos ombros.

Sorte: essa palavra de aplicação restrita. O espaço privado, a privacidade, o conforto. Qual é a importância dessas pequenas palavras, e a imensidão de sua ausência em tantos lares agora mesmo? Pergunto.

A Espanha é um país de forte tradição católica. Dois de cada três espanhóis se declaram católicos, embora apenas um terço deles participe de alguma liturgia básica, tipo ir à missa ou se confessar.

Além disso, o país é o berço da Opus Dei (literalmente, "Obra de Deus"), espécie de subjurisdição da Igreja Católica que nasceu no entreguerras (1928, mais exatamente) e chegou a ser comparada a uma seita de características maçônicas —devido, inclusive, à sua forte influência política e econômica, que remonta ao período de renovação "tecnocrata" do regime ditatorial franquista.

Naturalmente, portanto, é de se entender, as procissões de Semana Santa são um grande evento em todo o país.

Lembro da primeira vez que testemunhei uma. Vivia então em Tarragona, nome moderno para Tarraco, uma das principais cidades mediterrâneas do Império Romano e patrimônio histórico da humanidade.

Ali, a uma hora de Barcelona, misturam-se muralhas romanas e vielas medievais que desembocam em inúmeras pequenas e grandes praças no chamado "casco" (centro) antigo. Do meu balcão, eu avistava um arco de pedra de 2.000 anos, vestígio do fórum romano...

A procissão de Semana Santa de Tarragona, que se celebra pelo menos desde o século 16 e chega a reunir 30 mil pessoas de todas as partes, ficou bem registrada nas minhas retinas laicas por conta de um detalhe, que não eram as flores, não eram as maravilhosas e detalhistas fantasias de centuriões romanos e monges, não eram os santos envernizados, não era o esquife do Santo Sepulcro erguido por milhares de mãos e coroado por velas de LED e tochas. Eram os capuzes dos nazarenos.

Em forma de cone pontiagudo, me remeteram inevitavelmente aos gorros brancos usados pela Ku Klux Klan (agora vocês visualizaram, né?).

Os “capirotes”, como são chamados aqui, são chapéus com estruturas de papelão usados como parte da vestimenta dos confrades que encenam as procissões de Semana Santa.

Seu uso remonta à época da Inquisição espanhola, quando o Santo Ofício os prescreveu para condenados que desfilavam pelas ruas, como um signo de penitência pública.

Hoje em dia, segundo a confraria e o significado do dia, os capirotes, assim como as túnicas e máscaras que recobrem os rostos dos desfilantes, assumem diferentes cores (em geral, branco, vermelho, violeta e preto).

Um dos pontos altos é o desfile do Santo Enterro, na sexta-feira. E, para todos, o domingo de Páscoa, com seus ovos de chocolate. Não neste ano.

Aqui, tanto quanto comer “torrijas” (rabanadas), é tradição que os padrinhos deem de presente aos afilhados uma "mona" de Páscoa, um bolo decorado com frutas cristalizadas e um ou mais ovos cozidos (!) metidos na massa. Deve ser comida na segunda-feira pós-Páscoa, conhecida popularmente como "día de la mona".

Neste ano, com o cancelamento das procissões e o fechamento dos negócios, as famílias confinadas terão que buscar sua mona numa das poucas confeitarias abertas que ainda entregam em domicílio —ou fazer em casa.

E apurar os ouvidos no domingo ao meio-dia, quando os sinos das igrejas soarão, de acordo com a Conferência Episcopal Espanhola, “para acompanhar a solidão de milhares de pessoas que faleceram e mostrar esperança e consolo a seus familiares”. Namastê.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.


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