Dia #46 - Terça, 28 de abril. Cena: ah, que saudade de pedir um vermute num boteco!!
Observo a mulher à minha frente. Corte joãozinho, cabelo grisalho, um pouco cansada ou debilitada (adivinho pelo brilho de suor nas têmporas brancas, a gola da camiseta rosa em desalinho).
Bom, normal. Estamos em um hospital.
Faço um esforço pra captar seu olhar. É que eu acho que a conheço. Por fim, desisto: chamam meu número, a curiosidade se dissipa.
Como eu disse depois a um amigo, nunca fui boa fisionomista. E, agora, com as onipresentes máscaras que tapam metade do rosto, só nos resta tentar ser bons olhistas.
Na calçada, dou passagem a uma mãe com uma bebê bunitinha num carrinho. Eu sorrio, ela sorri. Acho. Sorrisos invisíveis.
Uma menina me dá uma safanão sem querer na fila do pão. Sorrio de novo, à guisa de não-tem-importância.
Mas ela não vê. E começo a ficar levemente angustiada. Teremos que adaptar nossa expressão emocional ao âmbito ocular? Perderemos as sutilezas da cordialidade não-verbal? Desenvolveremos leitura de orelhas? Só eu tô pirando nisso?
A Espanha é um caso à parte na Europa. Ao contrário de outros países como França e Itália, a equipe de ministros do premiê Pedro Sánchez escolheu não fixar datas para o desconfinamento.
Em vez disso, anunciou hoje que a desescalada será feita em quatro etapas que avançarão de maneira "assimétrica", conforme o comportamento epidemiológico de cada província.
Isso significaria uma 'descompressão' do desconfinamento em intervalos de tempo variáveis, mas que devem ser idealmente concluídos em até oito semanas, ou seja, final de junho, aka começo do verãozão europeu.
A atual fase zero ou "preparatória" se consolidará a partir da semana que vem, com a reabertura de serviços com hora marcada ou sob demanda. Nessa entram, por exemplo, restaurantes que entregam em domicílio.
Localidades em que os casos já caíram a zero, como as Canárias, poderiam inclusive saltar direto para o nível 1, com abertura do pequeno comércio, exceto grandes centros ou parques; sugestão de horários exclusivos para atendimento de maiores de 65 anos, conforme o contexto; abertura de lugares de culto e áreas externas de bares, com ocupação máxima de 30%; e hotéis e alojamentos turísticos, exceto áreas comuns.
Na fase dois, ressuscitaria finalmente parte do setor cultural e de ócio, à base da regra do 1/3: cinemas, teatros, conferências, restaurantes, museus e espetáculos em lugares fechados estariam liberados pra funcionar com até 1/3 da lotação máxima; e espetáculos ao ar livre, com menos de 400 pessoas, desde que sejam sentadas.
Isso (imagino, torço, desejo) significa que neste verão poderão acontecer, por exemplo, os famosos Cines a la Fresca de Barcelona, soirées com shows e projeção de filmes ao ar livre na praia, no castelo de Montjuïc e outros belos pontos da cidade, com todo mundo sentadinho fazendo piquenique (coisa linda, vocês têm que ver).
Essa lotação máxima seria promovida a 50% na fase três, a última antes do que já se convencionou apelidar de "nova normalidade", esse futuro distópico meio nebuloso com cara de sci-fi de anteontem.
Em todas as etapas e por tempo indeterminado, ficam valendo as medidas de higiene e isolamento social que já viraram mantra (inter)nacional –inclusive distância de 1,5 metro a 2 metros entre transeuntes, espectadores, comensais, funcionários, pombas na praça Catalunha.
E máscaras.
Agora, segundo o governo, vem a parte "mais perigosa e consequentemente mais difícil". Os "protagonistas" dessa desescalada, disse Sánchez em discurso sentimental-comedido hoje pela tevê, "são os cidadãos". Com nosso sorriso Mona Lisa.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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