Dia #41 - Quinta, 23 de abril. Cena: passarinho na varanda cantando. Parou de chover.
Se fosse um dia normal, Barcelona deveria haver amanhecido nesta quinta (23) dominada por bancas de livros e rosas.
23 de abril é Dia de Sant Jordi, o santo patrono da cidade. É o equivalente ao Dia dos Namorados catalão, e se celebra sem caixa de bombom, perfume ou set de cuecas.
Pela tradição, homens ganham livros e mulheres, rosas vermelhas, decoradas com um raminho de trigo, símbolo da fertilidade, e fitinhas de listras amarelas e vermelhas, cores da Catalunha (aproveitando o ensejo pra fazer um statement, The Catalan Way).
O vermelho é uma alusão ao sangue do dragão, derramado pela espada de São Jorge em batalha na mítica montanha catalã de Montblanc. A fábula é tão querida na cidade que até a Casa Batlló, uma das preciosidades arquitetônicas de Gaudí, foi inspirada nela.
Pra celebrar a data, nem precisa ser namoradis ou parceiris —amigos se presenteiam, filhos com pais etc.
Quando eu cheguei aqui, anos atrás, me pareceu um costume poético, e ao mesmo tempo de um machismo tremendo (eu queria livro, pôohhamm). Até que um amigo me presenteou com meu primeiro livro de Sant Jordi e eu entendi que vale tudo, todo mundo ganha e dá o que quiser.
O catalão é um povo doido por livros. As banquinhas de Sant Jordi trazem exemplares novos e de segunda mão, em várias línguas, edições mil, preciosidades. Misturar-se com a multidão Sant Jordínica que domina as calçadas e parques e esquinas é um prazerrrrr. Mas não hoje.
A celebração foi adiada para 23 de julho, ápice do verão, e a gente pode prever que não será como nos anos anteriores. Provavelmente haverá regras de distanciamento, máscaras e menos beijos e amassos públicos. Ou não.
E, como a gente não pode sair de casa, um coletivo de 37 editoras independentes catalãs (sí, quase 40 editoras locais, señoras e señores! bravuuu) divulgou um manifesto de Sant Jordi, pedindo que "desconfinemos os livros".
O pedido parece estar funcionando: a plataforma catalã Libelista, que reúne mais de uma centena de livrarias locais independentes, registrou o dobro de vendas durante o período de confinamento. A ideia é que, ao comprar online, o usuário "dá apoio às livrarias locais e ajuda a manter o tecido cultural da sua cidade".
Fora da Catalunha, as abundantes feiras de livros que deveriam acontecer nesta época na Espanha também deixaram muitos negócios órfãos, e tem até livraria fazendo crowdfunding pra remediar a crise e não fechar as portas.
É o caso da 80 Mundos, de Alicante, capital da Comunidade Valenciana, onde as línguas oficiais são o espanhol e o valenciano, uma ramificação do catalão (embora, muy importante observar, subsistam polêmicas mil sobre se é língua própria ou variação).
Em menos de um mês, essa livraria já recebeu mais do que o dobro de sua meta inicial de 6.000 euros (R$ 36 mil) para se manter funcionando durante a quarentena, com doações de leitores que compram diferentes packs de leitura ou se convertem em sócios.
Na página do projeto, tem pra todos os gostos: pacote quarentena, de fanzines, pra amantes de esportes, filosofia, clássicos, romances policiais, gatos, queer, e até um especial "platinum" no valor de 500 euros (R$ 2.971), já apoiado por dois doadores.
"Este ano, mais do que nunca, necessitamos vocês", diz o manifesto das editoras catalãs. "Se vocês compram livros, talvez não impedirão que a resposta política à epidemia mate muitos projetos literários (uy), mas, sim, limitarão os estragos".
A preocupação é grande, porque essa época de celebração é estratégica para a sobrevivência do setor. Pra não sobrecarregar um sistema underground que não dá conta da distribuição massiva e não abarrotar as ruas de entregadores, os independentes também sugerem: comprar agora, ir pegar logo menos. Quando a gente puder sair, entre rosas e livros.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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