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'É muita responsabilidade ser a última pessoa que alguém vê antes de morrer', conta enfermeiro na Itália

Aurelio Filippini coordena a enfermagem em um hospital na Lombardia, na Itália

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Aurelio Filippini
Varese (Itália)

No dia 21 de fevereiro soube que o vírus tinha chegado à Itália pela televisão. Em seguida, por uma rede de colegas da Lombardia, ouvimos os enfermeiros que trabalham em Codogno [onde foi identificado o paciente 1 da Itália] e estavam todos muito assustados, sem saber como o vírus tinha chegado ali, um hospital pequeno.

Não sabiam como encarar de imediato a situação. A China parecia realmente distante naquele momento. Houve um temor imediato.

Eu pensei naquela hora que tinha, então, chegado a toda parte. E que, no meu lugar de trabalho, deveríamos começar a trabalhar para entender como enfrentar isso.

É sempre muito tarde quando acontece uma coisa do tipo. Primeiro, se deve começar a trabalhar com a cabeça e depois com as mãos e as pernas.

Um profissional totalmente paramentado coloca a mão na cabeça de idoso que está intubado e deitado em uma maca
Profissional de saúde cuida de paciente com Covid-19 em hospital de Varese, na Itália - Flavio Lo Scalzo - 9.abr.20/Reuters

Com meus amigos, nos perguntamos: "O que podemos fazer agora?". Como sou presidente da Ordem dos Enfermeiros de Varese, criamos rapidamente um comitê de crise, para entender todas as indicações do Ministério da Saúde e da região da Lombardia.

Desde o dia 3 de março, atuo como coordenador do ambulatório onde são feitos os exames nos casos suspeitos de Covid-19, sejam funcionários ou pacientes. Fazemos cerca de uma centena de exames todos os dias, incluindo pronto-socorro e internados.

O exame, como técnica em si, é muito rápido, dura cerca de um minuto. Mas, por ser Covid-19, exige mais cuidados, troca constante de luvas, antisséptico, acaba alongando para seis a sete minutos para cada paciente.

As reações de quem precisa fazer o exame foram mudando ao longo do tempo. No começo, as pessoas tinham muito medo. Fazer o exame significava que todos pensavam que a pessoa tinha a Covid-19.

E isso gerava muito medo, medo de saber o resultado, o impacto na vida. Fora que os primeiros casos chegavam já sem condição de falar, então tínhamos que lidar com os parentes, assustadíssimos.

Agora, aqueles que chegam ou precisam refazer o exame para sair da terapia veem o exame como uma esperança —de o resultado ser negativo, de poder voltar para a casa. Mudou um pouco a ótica porque mudou o período. O resultado sai em seis a sete horas.

Os primeiros pacientes que chegaram no hospital vinham de outras cidades, aquelas mais atingidas, como Bérgamo, Bréscia e Cremona. Quando se espalhou, passamos a receber os nossos moradores.

O hospital tem cerca de 500 leitos, mas nem todos ficaram ocupados por Covid-19.

Os operadores sanitários têm os mesmos medos das pessoas. Esta epidemia chegou realmente de modo inesperado. China, Itália e depois o resto do mundo.

E cada país atingido se dava conta de que não estava imune. Isso assusta, os números de mortes são muito altos. Você se preocupa por si próprio e pelos mais próximos.

Mas usamos a ciência, que é o que distingue os operadores sanitários. E começamos a pensar: "Ok, isso é o que está acontecendo. Dado que trabalhamos com a ciência, o que a ciência nos diz para fazer?".

E seguimos os protocolos. E a agitação passa a ser gerenciada com uma certa segurança. É preciso usar a ciência para gerenciar a parte emotiva.

Tivemos operadores contaminados, a maioria fez o isolamento em casa, não tivemos nenhum morto. Mas entre pacientes… Vimos muitas mortes, muitas mesmo.

O mais desafiante foi ver como as pessoas morriam tão rapidamente. Algumas vezes entre receber o oxigênio pelo cateter pelo nariz e ser intubado na UTI levava poucas horas. Então era difícil, com os números altos, conseguir acompanhar a evolução tão rápida dos pacientes.

É muita responsabilidade ser a última pessoa que alguém vê antes de morrer. Naquela hora, você vira marido, mulher, filho, neto, todos aqueles que o paciente não consegue ver nem se despedir. Isso é muito forte emocionalmente.

No sábado (11), demos a extrema-unção a três pessoas em condição avançada, e a primeira senhora morreu enquanto dávamos à terceira. O padre rezava do lado de fora do quarto, porque não pudemos fazê-lo usar os dispositivos de proteção, e a gente transmitia.

Nunca tinha acontecido isso comigo. Me afetou muito. Por um lado, foi bonito estar ali, aquela senhora não estava só. Colocar a mão na sua testa, rezar, foi muito forte. Como último gesto, ela pegou minha mão. Os outros dois morreram poucas horas depois.

Por sorte, tivemos algumas poucas alegrias, sobretudo com as pessoas que tinham alta. Teve uma senhora que chegou transferida de outra cidade, intubada e, quando conseguiu sair, não sabia onde estava.

Não reconhecia nada, estranhava as árvores que via pela janela. Conseguimos encontrar um telefone e ela ligou para um neto, um adolescente, e choraram muito. Muito bonito. Ela não falava, só chorava, olhava o neto, que gritava "vovó", "vovó", e choravam.

Uma coisa que a Covid-19 fez mudar foram os sentidos. Eles operam de forma completamente diferente.

Você veste um macacão e touca, que afetam sua audição. Você ouve tudo abafado. As máscaras, apertadíssimas no rosto, não te permitem perceber nenhum odor. Você sente a própria respiração, mas nenhum cheiro de fora.

Sobre os olhos, uma máscara ou óculos, e até a vista tem que se adaptar. Nas mãos, sempre dois pares de luvas, e o tato também some. Tivemos que recomeçar a aprender a usar os sentidos.

Como os pacientes usam capacetes, também fica difícil ouvi-los. Eles precisam gritar e, mesmo assim, se ouve pouco. E você deve gritar, porque eles também ouvem mal.

Nessa situação, os olhares fazem a diferença. E isso me afetou também. Nós, com as máscaras, eles, com máscaras ou capacetes, isso permite que a pouca comunicação seja feita com olhos. Ver alguns daqueles olhares foi muito doloroso.

O que você diz às pessoas depende do estado de gravidade de cada um. Uma pessoa que piora muito rapidamente, é importante estar por perto.

Elas se dão conta disso, de que respirar vai ficando cada vez mais difícil, de que vão precisando colocar cada vez mais equipamentos. E começam a pedir para falar com alguém.

Quando não se pode fazer ligação, videochamada, a melhor coisa a fazer é dizer que você vai transmitir o recado. Em casos assim, não dou garantias além de dizer que estou ali e perguntar o que mais posso fazer.

Eu moro sozinho, e isso nesse momento é uma sorte. Não vi mais a minha mãe e não a verei até isso acabar, porque não quero correr o risco de contaminar ninguém. Na Páscoa, almoçamos todos juntos por vídeo, com meus irmãos e sobrinhos. Conversamos, comemos.

Não fiz o exame, nunca tive sintomas, e a indicação é de não fazer exames em quem não tem sintomas. Mas me comporto como positivo, tomo todos os cuidados.

Mesmo com a desaceleração dos casos, continuo alerta. Não estou relaxando. Estou vendo a segunda onda na China, as casas de repousos aqui com tantos casos, e acho que isso não está no fim.

Não consigo relaxar.

Aurelio Filippini, 52, é coordenador de enfermagem do Hospital Circolo e Fondazione Macchi, em Varese (Lombardia), na Itália. Depoimento a Michele Oliveira

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