Descrição de chapéu Coronavírus

Em campo superlotado no Maláui, refugiados rezam para que coronavírus não chegue

Cerca de 44 mil pessoas vivem em espaço construído para abrigar 10 mil

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Rio de Janeiro

Há seis anos o congolês Frank Donald, 29, encontrou abrigo num campo de refugiados no Maláui, na África oriental. Sobrevivente dos conflitos étnicos, da instabilidade política e da violência de grupos armados no seu país, ele agora luta contra a pandemia do novo coronavírus num lugar superlotado.

Frank é um dos 44 mil habitantes de Dzaleka, campo criado em 1994 para abrigar 10 mil pessoas. A maioria vem da República Democrática do Congo, mas também há refugiados de Burundi, Ruanda, Somália e Etiópia.

O Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), responsável pelo campo, alertava para a superlotação do espaço mesmo antes da disseminação da Covid-19.

Atividade em escola no campo Dzaleka, antes do fechamento do espaço diante da pandemia de coronavírus
Atividade em escola no campo Dzaleka, antes do fechamento do espaço diante da pandemia de coronavírus - Evaldo Palatinsky/Arquivo pessoal

Construídas com pouco distanciamento, as casas têm muitas vezes um único cômodo, onde moram numerosas famílias. As condições sanitárias são precárias, e um único banheiro é dividido por até mil pessoas.

A busca por água e alimentos é diária, e longas filas se formam na única agência bancária do campo, na qual os refugiados coletam os US$ 3 (R$ 16,60) que recebem da ONU todo mês.

"A gente reza a Deus para que ele nos isente do vírus, porque caso contrário não vamos sobreviver", diz Frank à Folha por telefone.

Ele afirma que os refugiados têm seguido algumas instruções, como evitar apertos de mãos e reforçar a higiene. Ainda assim, o isolamento social não é uma realidade para pessoas que têm a fome como maior urgência.

"Não tem como dizer para as pessoas ficarem em casa. Como receber comida, pegar água? Elas estão muito perdidas, não sabem o que fazer."

Com 23 casos confirmados da doença e três mortes, o governo do Maláui anunciou um lockdown que terá início no sábado (25).

"Pense nessa nação, onde a maioria das pessoas depende da busca de comida todos os dias. Você pode ficar seis meses em casa, mas e as pessoas pobres?", diz Frank.

Além dos US$ 3 mensais, os refugiados recebem da ONU um pouco de óleo e feijão. Em maio do ano passado, a organização teve que cortar pela metade a alimentação, porque o financiamento foi insuficiente.

Na ocasião, o Programa Mundial Alimentar da ONU alertou que precisaria de quase US$ 2 milhões (R$ 11 milhões) para restabelecer integralmente a comida no campo.

Assolados pela fome e pelas incertezas relativas à pandemia do novo coronavírus, os refugiados se voltam para Deus em busca de esperança.

O campo conta com mais de 812 igrejas, a maioria das quais evangélicas. Os pastores têm um importante papel de liderança na comunidade e vêm ajudando na conscientização contra o coronavírus.

"Acredito em Deus e sei que tudo acontece por um motivo. Não posso julgá-lo pelo que está acontecendo, sei que ele está no controle", afirma o congolês Maick Mutej, 28.

Maick e Frank, que dividem uma casa, atuam como voluntários para a ONG brasileira Fraternidade sem Fronteiras em Dzaleka.

"Trabalhar como voluntário é um sonho que se tornou realidade. Entendi a importância de ajudar outras pessoas, é tudo o que eu preciso", diz Maick.

O congolês se diz preocupado com a possibilidade de disseminação do vírus no campo. "Se o vírus chegar será um desastre. As pessoas sabem que não tem como prevenir com sucesso, por causa das condições."

Por enquanto, ainda não há casos confirmados no local. Há cerca de três semanas, quando o governo anunciava os primeiros registros da doença, a ONU começou a construir 41 tendas para isolar novos refugiados.

Cada uma abrigará cinco pessoas, que passarão por uma quarentena de 14 dias. O espaço ainda não foi inaugurado porque os banheiros não estão prontos e fornos precisam ser instalados para que os refugiados possam cozinhar.

Quando o isolamento começar, as pessoas que apresentarem sintomas serão transferidas das tendas para dois barracões com cerca de 30 leitos cada um.

O hospital improvisado, no entanto, não conta com equipamentos como respiradores ou desfibriladores. Assim, casos graves da doença serão encaminhados para uma unidade de saúde na capital, Lilongwe, a cerca de 40 km.

O professor brasileiro Evaldo Palatinsky, 50, afirma acreditar ser o último voluntário que ainda está no campo. Ele trabalha na mesma ONG que Maick e Frank, que também são seus colegas de casa.

"Existe uma sombra aqui... Será que o vírus já está no campo? Os refugiados continuam entrando, a gente não sabe se tem alguém contaminado. Como não tem hospital, não tem teste, talvez as pessoas estejam morrendo e a gente não saiba que foi de corona", diz.

No campo desde o final de janeiro, Palatinsky chegou a abrir uma escola para crianças refugiadas, que oferecia uma alimentação reforçada aos alunos, com itens como salada, ovo e carne.

A escola recebeu milhares de pedidos de matrícula, mas só tinha vaga para 185 crianças. As mais vulneráveis foram escolhidas. Depois de 40 dias, no entanto, o espaço precisou ser fechado, diante do avanço da pandemia.

Palatinsky conta que uma das mães dos alunos reclamou da suspensão das atividades. "Ela disse: 'Estão fechando a escola que dá comida para nossas crianças por causa de uma ameaça? E a fome, que a gente tem certeza que existe? Não vai fazer nada?'"

Cabe aos voluntários das ONGs e à equipe da ONU conscientizarem a população sobre a necessidade de prevenir, na medida do possível, a disseminação do vírus.

"A mensagem vai chegar, mas vai levar mais tempo do que o normal. A gente repassa o que a imprensa tem publicado, a ONU também fez um material didático, em várias línguas. É de casa em casa entregando", diz o professor.

Com o fechamento do espaço aéreo e das fronteiras, Palatinsky foi obrigado a permanecer no campo.

Com Maick e Frank, tem fabricado sabão e máscaras para distribuir aos refugiados e montado os fornos que irão equipar as tendas construídas pela ONU.

"Estou muito envolvido em muitos projetos, queria terminá-los. Deus tem seu plano, por alguma razão acabei ficando aqui, eu também não sei. Mas estou em paz, ajudando as pessoas", afirma.

Em seu site, o Acnur informa que formulou planos de contingência e mecanismos de colaboração com governos e parceiros para proteger os refugiados diante da pandemia.

O órgão diz que tenta angariar US$ 33 milhões (R$ 183 mi) para combater a disseminação do vírus. A ONU afirma que reuniu insumos, como equipamentos de proteção e equipamentos médicos, preparou locais de isolamento nos campos e incentivou melhoras na higiene.

Segundo a agência da ONU, o maior desafio agora é garantir que não haverá barreiras para que os refugiados sejam atendidos pelos sistemas de saúde dos países onde estão vivendo.

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