Descrição de chapéu Coronavírus

'Guayaquil é uma necrópole', descreve escritora equatoriana

Solange Rodríguez Pappe vive perto do centro da cidade, uma das mais castigadas pela crise

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Buenos Aires

"Minha cidade é hoje uma necrópole", resume à Folha, por telefone, a escritora equatoriana Solange Rodríguez Pappe, 44, que mora em La Ferroviária, bairro próximo ao centro de Guayaquil.

Desde que a pandemia do coronavírus chegou ao Equador, essa cidade histórica e litorânea, capital econômica do país e com 2,2 milhões de habitantes, tem chocado o mundo com imagens de corpos e caixões amontoados em praças e ruas.

Não se sabe bem quem morreu em decorrência do coronavírus ou por outros motivos em Guayaquil —segundo a Universidade Johns Hopkins (dos EUA), até a tarde de domingo (12), a Covid-19 tinha deixado 333 mortos, além de 7.466 infectados no país todo.

Homem vende caixão no meio da rua em Guayaquil, no Equador
Homem vende caixão no meio da rua em Guayaquil, no Equador - Vicente Gaibor del Pino - 10.abr.2020/Reuters

Com o sistema de saúde e de recolhimento de corpos da prefeitura em colapso, famílias se cansam de ligar para solicitar o recolhimento dos corpos de seus familiares e acabam esperando durante dias.

Por medo de contágio, a saída para muitos é levá-los para fora de casa.

"Eu imagino uma criança que vê seu avô morto em cima da mesa de jantar por vários dias. É uma imagem que ninguém pode esquecer", diz Rodríguez Pappe.

Quando a pandemia começou a atingir sua cidade, a escritora, que também é professora universitária, estava nos EUA, participando de uma conferência.

"Quando voltei, a cidade era outra. Muitas ruas estão fechadas, há pouca gente caminhando. Sinto que nasceu um hábito novo, de se cumprimentar à distância, só com a cabeça, com quem se cruza na rua. É como se fosse uma saudação de cumplicidade em meio à essa tragédia. Antes ninguém cumprimentava estranhos aqui", diz.

Rodríguez Pappe é um dos novos talentos da literatura latino-americana. Autora de contos fantásticos e de terror, publicou duas coletâneas, "La Primera Vez que Vi un Fantasma" (ed. Candaya), "La Bondad de Los Extraños" (ed. Antropófago). Também dá aulas na Universidad de las Artes.

"Estamos adotando as aulas a distância, mas como motivar os alunos nesse contexto? Um aluno meu morreu outro dia, tinha 23 anos, outros pais de alunos estão doentes."

A escritora conta que tem saído pouco de casa —a caminhada mais longa, de 45 minutos, é quando vai visitar a mãe, que mora sozinha no norte da cidade.

"Estou aproveitando para observar o comportamento e creio que, como escritora, minha tendência agora será fugir dos contos fantásticos e tratar de ser mais realista."

Sua tese de mestrado, por coincidência, foi sobre como as distintas catástrofes que açoitaram Guayaquil no passado se refletiram na literatura.

E foram várias: no século 19, houve epidemias de febre amarela e de peste bubônica; no século 20, uma série de inundações.

"Esta é uma cidade que tem uma capacidade única de se reconstruir. Somos muito resistentes, mas só superamos essas tragédias do passado quando atuamos juntos, como coletividade. E creio que isso está acontecendo agora também."

Há duas semanas, uma força-tarefa do Exército foi enviada à cidade para tentar minimizar o problema.

Dois novos cemitérios foram abertos, e a lista de onde os mortos foram enterrados está disponível na internet. Muitos enterros foram realizados sem a presença de familiares, para evitar novos contágios.

"São como desaparecidos em uma guerra, foram levados, e agora há dificuldade para os familiares saberem onde estão enterrados. Há muita confusão nos registros", diz a escritora.

"Não adianta fingirmos normalidade no meio disso. A morte chegou e está instalada entre nós. Teremos de aprender a como sair disso."

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