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Medidas duras contra Covid-19 no Peru esbarram em problemas sociais

Desigualdade e falta de investimento na saúde diminuem efetividade de ações do presidente

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Buenos Aires

Uma das imagens mais marcantes da pandemia do coronavírus no Peru é a dos "caminhantes", como são conhecidos os moradores do campo que viajam para grandes ou médios centros urbanos para trabalhar.

Pegos de surpresa pelo decreto do presidente Martín Vizcarra que impôs, em 16 de março, quarentena obrigatória no país, essas centenas de milhares de pessoas ficaram sem transporte para voltar para suas casas nem dinheiro para se manter nas cidades.

"Vimos um comportamento muito cruel em hotéis e pensões de baixo custo, onde essas pessoas se alojam. Eles foram expulsos e, agora, têm de caminhar horas e às vezes dias para chegar às suas casas", diz Carmen Yon, especialista em antropologia da saúde e em questões sanitárias nas regiões amazônica e andina do Peru. "E, nesta caminhada, estão vulneráveis à doença ou se transformam em vetores dela."

Peruanos caminham pela estrada Panamericana para tentar tomar ônibus para deixar Lima em meio à pandemia de coronavírus
Peruanos caminham pela estrada Panamericana para tentar tomar ônibus para deixar Lima em meio à pandemia de coronavírus - Sebastian Castaneda - 21.abr.20/Reuters

Autoridades do país tentam dissolver as caminhadas em grupo, em alguns casos usando caminhões do Exército que lançam jatos de água na população. Ainda assim, o fluxo segue.

O Peru ocupa hoje o segundo lugar no número de casos confirmados da Covid-19 na América do Sul, com 28.699 infectados, de acordo com dados compilados pela universidade americana Johns Hopkins até a tarde desta terça-feira (28).

Com taxa de 89,71 casos por 100 mil habitantes, no entanto, está abaixo do Equador (136), mas acima do Brasil (32,54). A cifra de mortos, 782, coloca o país em terceiro na lista de óbitos, mas o Peru tem 2,4 mortos por 100 mil habitantes, índice próximo ao do Brasil (2,2) e bem menor que o do Equador (5).

Vizcarra foi rápido ao decretar uma quarentena de regras muito restritas, permitindo que as pessoas saiam apenas para comprar itens básicos —alimentos e medicamentos— ou para trabalhar em serviços considerados essenciais.

Além disso, há um toque de recolher diário, das 18h às 4h, monitorado por militares. As fronteiras do país estão fechadas.

As medidas reconfortaram a opinião pública, e, segundo pesquisa recente do instituto Ipsos, o presidente tem 83% de aprovação popular. A cifra, porém, não reflete a situação do país.

"Apenas um quinto da população pode fazer 'home office'. O restante vive de trabalho informal. E muitos peruanos sequer podem fazer compras para uma semana, um mês, porque poucos têm refrigerador em casa, no caso das classes mais pobres", diz a acadêmica e jornalista Jacqueline Fowks.

"Respeitar a quarentena é quase impossível, é preciso sair para fazer bicos e buscar o pão de cada dia."

Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Informática do país, a taxa de informalidade do Peru hoje é de 72,6%. Os programas de reparação aos trabalhadores informais impedidos de ir às ruas cobrem apenas um terço desse total.

"Em Lima, vemos gente tentando vender o que pode enquanto a polícia ou o Exército não aparecem. Vendem luvas e máscaras, por exemplo, completamente caseiras e sem garantia de eficácia", conta Fowks.

Dentro dessa população exposta à crise dupla, sanitária e econômica, estão os refugiados. O Peru tem o segundo maior número de venezuelanos que fugiram da crise humanitária em seu país, atrás apenas da Colômbia.

Muitos haviam encontrado um meio de subsistência como ambulantes. Agora, mendigam nas ruas enquanto uma parte também caminha, tentando voltar à Venezuela.

"Vizcarra foi rápido ao decretar quarentena, mas isso só ocorreu porque era sua única opção. Ele sabe que o sistema de saúde peruano está desmantelado. Não temos o número adequado de UTIs nem de centros de saúde para primeiros atendimentos", diz Yon, especialista em antropologia da saúde.

Junto a outros acadêmicos e médicos, ela vinha fazendo alertas ao governo sobre a situação, mas diz que eles não foram ouvidos. "Era uma tragédia anunciada."

O Peru se beneficiou muito durante o "boom das commodities", por ser o segundo maior produtor de cobre da América do Sul —atrás do Chile.

Entre 2008 e 2010, as taxas de crescimento variaram entre 8% e 9% ao ano. Ainda assim, pouco foi destinado à saúde e ao combate à desigualdade.

Diferentemente de outros países que se beneficiaram dos bons índices no período e fizeram grandes gastos sociais em programas assistencialistas —como Brasil, Equador, Venezuela, Bolívia—, o Peru não investiu em políticas de transferência de renda ou de benefícios.

"Some-se a isso a série de governos corruptos que tivemos, que desviaram verbas que poderiam melhorar nossos hospitais", completa Yon. Dos últimos quatro ex-presidentes do Peru, três estão presos ou sendo investigados por escândalos de corrupção. O outro, Alan García, cometeu suicídio antes de ser levado pela polícia.

Além dos caminhantes, outra imagem constante nessa crise é a dos profissionais da saúde pedindo equipamentos de proteção para evitar a contaminação enquanto tratam os doentes.

Há 237 profissionais infectados, e, por isso, afastados do trabalho. Há enfermeiras que se recusam a atuar por não terem máscaras ou porque lhes pedem para reutilizar itens descartáveis.

Residentes e alunos dos últimos anos das escolas de medicina estão sendo recrutados para trabalhar especialmente em centros de saúde do interior do país.

Na semana passada, houve uma grande marcha em Lima. Imagens divulgadas por profissionais de saúde mostram corredores lotados de macas com doentes ou mesmo cadáveres à espera de recolhimento para serem sepultados.

A líder do sindicato de enfermeiras, Daisy Aguirre, diz que os principais hospitais não têm estrutura em seus necrotérios para mais de seis a dez cadáveres por dia, "que precisam ser retirados rapidamente".

"Agora, estão se acumulando, temos de adaptar salas dos hospitais e desalojar outras seções para poder abrigar todos, enquanto esperamos a retirada."

O governo tentou aprovar, às pressas, a contratação de estrangeiros, entre os quais médicos venezuelanos que já vivem no país mas atuam em outros setores, além de cubanos, que teriam seus diplomas validados instantaneamente.

O sindicato de médicos do seguro social estatal, no entanto, vem se posicionado contrário à medida, que está parada.

Para Yon, as questões de gênero têm sido um elemento importante nessa crise. Segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o Peru é o segundo país com maior número de casos de violência doméstica na região e o terceiro em feminicídios.

"A necessidade de ficar em casa tem aumentado as denúncias de violência doméstica, e não temos, como em outros países, refúgios para mulheres que são vítimas de violência."

Por enquanto, a quarentena obrigatória no Peru deve ir até 10 de maio, e o governo ainda não se decidiu se ampliará as medidas. A crise trará ao país uma forte recessão, com 4% no encolhimento da economia, segundo projeção da Cepal.

Isso em um ano pré-eleitoral, em que as primárias para decidir os candidatos estão programadas para serem disputadas no segundo semestre.

O calendário político, que já vinha acidentado por conta das crises recentes —renúncia de Pedro Pablo Kuczynski e o posterior fechamento do Congresso, por meio de dispositivo constitucional, por Vizcarra—, deve, assim, passar por redesenho.

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