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Depoimento

No Irã, medo era do que o governo não falava sobre a pandemia

Entre algumas diferenças, iranianos parecem mais preocupados com vírus do que brasileiros

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Brasília

Desembarquei em São Paulo no dia seguinte ao registro da primeira morte por coronavírus no Brasil.

Vinha do Irã, onde vivia, país até então com o terceiro maior número de mortos, depois de China e Itália. Hoje, já são mais de 4.000 óbitos confirmados no país do Oriente Médio.​

Ninguém me parou no aeroporto de Guarulhos para perguntas, para me examinar, nem para verificar o documento emitido no aeroporto Imã Khomeini, em Teerã, atestando minha saúde —obrigatório para todas as pessoas que viajam para fora do território iraniano.

Iranianos com máscaras para tentar evitar a contaminação por coronavírus caminham em rua de Teerã
Iranianos com máscaras para tentar evitar a contaminação por coronavírus caminham em Teerã - Atta Kenare - 5.abr.20/AFP

Desde a minha chegada, tenho a impressão de rever o mesmo filme, da escalada de casos confirmados e mortes em decorrência do vírus. Apesar de o roteiro básico ser semelhante, há algumas diferenças em relação ao comportamento da população e dos governantes.

A principal diferença é que a população iraniana parecia ter mais medo do coronavírus do que os brasileiros. Praticamente todos nas ruas estavam de máscara e luvas, poucos dias após a confirmação dos primeiros casos.

Supermercados e farmácias ficavam lotados devido ao medo de desabastecimento. As demais lojas, ainda que abertas, permaneciam vazias.

Muitos comerciantes dos tradicionais bazares fecharam suas portas por iniciativa própria, antes mesmo das restrições impostas pelo governo, a partir do fim de fevereiro. Pessoas se exercitando nos parques —iranianos adoram parques, e há vários na capital— eram uma raridade.

A sociedade iraniana adotava por conta própria medidas que não vejo aqui. Na entrada de grandes estabelecimentos, como shoppings e supermercados, funcionários bem protegidos mediam a temperatura de todos que chegavam. Quem tinha febre era barrado.

Estabelecimentos comerciais também pararam de aceitar pagamentos em dinheiro. Os próprios clientes inseriam os cartões e digitavam suas senhas. Não havia exceções.

Nos meus últimos dias em Teerã, queria comprar açafrão para trazer a um amigo —o produto iraniano é o melhor que existe—, mas com a conta bancária já encerrada não encontrei ninguém que aceitasse pagamento em dinheiro.

Por outro lado, as autoridades brasileiras foram mais rápidas no fechamento do comércio e na suspensão de atividades econômicas. Assim como foi mais rápido o movimento de parte da sociedade para exigir a retomada.

Claro que por lá também havia aqueles que não queriam ficar confinados. No feriado do Ano Novo iraniano —o chamado Nowruz, que paralisa o país por cerca de duas semanas—, parte da população pegou as estradas para visitar familiares.

Posteriormente, quando eu já não estava mais no país, o Irã endureceu ainda mais as regras de isolamento, embora tenha evitado o “lockdown”, a última medida restritiva, na qual agentes de segurança fiscalizam se as pessoas circulam pelas ruas.

Agora, citando o mesmo argumento do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, de querer evitar o colapso da economia, o governo iraniano vai retomar parte de suas atividades econômicas a partir deste sábado (11), apesar do receio da população.

A principal explicação para o medo dos iranianos pode ser encontrada na falta de confiança no que os governantes falam.

A população sempre acreditou que a situação real era pior do que a declarada. Se aqui no Brasil a fala de alguns líderes preocupa, por defenderem medidas que expõem a população ao vírus, por lá havia receio pelo que não era dito.

A desconfiança é justificada. No mês anterior ao surto, o governo iraniano havia escondido por alguns dias que abateu por engano um avião com 176 pessoas a bordo.

O regime iraniano também divulgou que apenas duas mortes por Covid-19 foram registradas antes das eleições parlamentares —na qual os linhas-duras eram favoritos. No dia seguinte ao pleito, os casos começaram a escalonar.

Quando o governo ainda negava que os casos tivessem chegado à capital —o surto começou na cidade religiosa de Qom—, o vídeo de uma equipe médica com roupas “de astronauta” em frente ao conhecido hospital Farmanieh, retirando uma pessoa da ambulância, circulou freneticamente nas redes sociais.

Em outro vídeo, filmado no centro da cidade, um homem agonizava tossindo e com falta de ar, sendo observado por uma multidão à distância.

A cena só para quando equipes médicas com vestimenta protetora chegam ao local. Ou seja, os iranianos descobriram o coronavírus por imagens assustadoras, não por meio de explicações das autoridades.

Ponto para a democracia e a transparência brasileiras.

Outra diferença entre os dois países é que os líderes iranianos não levantam polêmicas sobre a política de isolamento e tampouco apresentam remédios como solução milagrosa para enfrentar o novo vírus.

No entanto, isso não significa que não adotem um discurso destinado a conquistar a população. No caso do país do Oriente Médio, ataca-se os Estados Unidos e as sanções econômicas para justificar as dificuldades no combate à pandemia.

Apesar de não ser debatido publicamente, um médico iraniano relatou-me que estavam sendo usadas drogas contra o HIV para o tratamento da Covid-19.

Curioso que essa estratégia não tenha ganho a esfera política no Brasil, apesar de produzirmos um excelente coquetel genérico contra o HIV e estudo recente da Fiocruz ter apresentado resultados promissores.

Em um ponto, no entanto, Irã e Brasil são muito parecidos. Alguns líderes religiosos e parte dos fiéis ignoraram os alertas de propagação do vírus e buscaram manter a realização dos cultos.

Por lá, isso acontecia mesmo após a autoridade máxima do país, o aiatolá Ali Khamenei, ter suspendido a tradicional reza de sexta-feira para evitar aglomerações.

Eventos religiosos continuaram a levar multidões para a cidade sagrada de Mashhad. Por aqui, pastores e autoridades políticas vão à justiça para garantir a realização dos cultos, pois consideram importante esse conforto à população neste momento —um dos argumentos dos clérigos xiitas iranianos.

Vale lembrar que, no Brasil, usa-se a palavra “xiita” como sinônimo de radicalismo.

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