Descrição de chapéu Coronavírus

Pandemia pode levar a restrições duradouras de migrações pelo mundo

Fechamento de fronteiras e xenofobia podem impactar leis migratórias, apontam especialistas

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Viçosa (MG)

Para enfrentar a ameaça invisível do novo coronavírus, o mundo se fechou. Mais de 90% da humanidade mora em países com alguma restrição a viagens, segundo dados do início deste mês do Pew Research Center, dos EUA.

São 7,1 bilhões de pessoas, das quais 3 bilhões, ou 39%, estão em lugares que fecharam completamente as fronteiras para não cidadãos ou não residentes.

Em princípio, são determinações temporárias, que devem ser revogadas à medida que os riscos forem diminuindo.

Mas pesquisadores e entidades que atuam com imigrantes afirmam acreditar que a pandemia pode deixar uma marca duradoura nas políticas migratórias pelo mundo —e na própria percepção da população sobre o tema.

Mulher anda com máscara em Chinatown, área de concentração de imigrantes em Nova York
Mulher anda com máscara em Chinatown, área de concentração de imigrantes em Nova York - Spencer Platt - 21.abr.20/Getty Images/AFP

A tese é que situações de emergência como essa favorecem o nacionalismo e o temor a quem vem de fora —muitos estrangeiros já estão sendo alvo de xenofobia e culpabilizados pela transmissão da Covid-19 em vários países.

Cria-se, então, um ambiente que favorece a manutenção de algumas restrições à entrada de imigrantes, justamente quando a crise econômica decorrente da pandemia deve aumentar a necessidade de muita gente buscar uma vida melhor em outro país.

“Mais de 200 países e territórios impuseram limites à mobilidade por causa da pandemia. Vistas em conjunto, são as restrições migratórias mais abrangentes dos tempos modernos”, afirma Natalia Banulescu-Bogdan, diretora associada do programa internacional do Migration Policy Institute (MPI), dedicado a pesquisas e análises sobre políticas migratórias.

Segundo ela, precedentes, uma vez estabelecidos, podem se tornar difíceis de mudar. “Quando as pessoas se acostumarem a um volume reduzido de certas categorias de migrantes, será difícil batalhar para voltar a níveis anteriores. Isso tanto pelos riscos percebidos quanto pela atrofia da infraestrutura necessária para administrar esses fluxos.”

A pesquisadora também aponta que a pandemia forneceu uma justificativa para líderes políticos que já tinham bandeira anti-imigração forçarem medidas draconianas contra a entrada de estrangeiros, que não puderam conseguir por outros meios.

Ela cita o presidente dos EUA, Donald Trump, que anunciou, no último dia 20, a suspensão por ao menos 120 dias da entrada de imigrantes no país.

A justificativa foi não só o “ataque do inimigo invisível” que é o vírus, mas também a “proteção aos empregos de nossos GRANDES cidadãos americanos”, segundo escreveu no Twitter.

No dia seguinte, o governo informou que suspenderia por 60 dias a emissão da maioria dos green cards, documentos permanentes de imigração.

Outro líder com forte agenda anti-imigrantes, o premiê da Hungria, Viktor Orbán, suspendeu no dia 1º de março indefinidamente o acesso de refugiados a áreas de fronteira, alegando riscos de saúde por causa da Covid-19.

Na ocasião, disse que havia observado “uma certa ligação entre o coronavírus e os migrantes ilegais”. Ele não apresentou nenhum dado que justificasse essa afirmação, e até aquele momento a Hungria não apresentava casos confirmados da doença.

Na Itália, o ex-ministro do Interior Matteo Salvini, de ultradireita, atacou o governo por “não defender os italianos” ao deixar desembarcar no país, em fevereiro, um navio de resgate com mais de 270 africanos a bordo.

Os passageiros ficaram em isolamento por duas semanas, e nenhum caso de transmissão de Covid-19 no país foi relacionado a eles.

“Vírus se espalham pelo contato de humano para humano, mas não há nenhuma evidência que sugira que migrantes e refugiados tenham desempenhado um papel desproporcional no contágio da Covid-19 no mundo”, diz Bogdan, do MPI.

Para ela, é mais provável o oposto, já que o rastreamento do início da transmissão comunitária em vários países mostrou que ela começou pela chegada de cidadãos que voltavam do exterior.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), viajantes casuais ou frequentes, como turistas e quem se desloca a negócios, são mais propensos a espalhar doenças transmissíveis do que migrantes e refugiados, que muitas vezes estão estabelecidos há anos em um mesmo lugar.

Apesar disso, imigrantes já estão sofrendo discriminação relacionada à pandemia em vários países.

Chineses e outros asiáticos vêm sendo hostilizados e atacados ao redor do mundo. Europeus relataram expulsão de hotéis e xingamentos na rua em países da África e na Índia.

Na própria China, onde o vírus foi detectado pela primeira vez, há casos de africanos e outros estrangeiros expulsos de hotéis e casas que alugam e impedidos de entrar em estabelecimentos públicos por medo da população local de uma segunda onda de contaminação vinda de fora.

Uma das explicações para esse temor ao estrangeiro é que ele vem de mecanismos evolutivos muito primários.

Segundo a cientista dinamarquesa Lene Aarøe, que estuda a conexão entre o medo de doenças e as opiniões das pessoas sobre imigração, nossos ancestrais, sem saber como as enfermidades infecciosas se espalhavam, desenvolveram um “sistema imune comportamental”, ou seja, uma tendência a evitar tudo que pudesse trazer patógenos.

Após experimentos na Dinamarca e nos EUA, ela afirma que essa proteção irracional e inconsciente pode moldar até hoje nossas ideias sobre política e nos levar a rejeitar pessoas de fora durante epidemias mesmo quando elas não são uma ameaça específica.

Para Natalia Bogdan, do MPI, o fechamento de fronteiras deveria ser uma solução limitada principalmente ao início da crise, para dar algum tempo de os governos se prepararem.

“Uma vez que o vírus passa para o estágio de transmissão comunitária, restrições a viagens, especialmente com medidas frouxas internas, têm benefício limitado. Elas não funcionam isoladamente nem são uma solução mágica. E o tiro ainda pode sair pela culatra, por dar uma falsa sensação de segurança e de que o perigo está sendo contido.” ​

Brasileiro pode ser hostilizado como viajante, diz especialista

No Brasil, entidades de direitos humanos se preocupam com determinações governamentais que já estão em curso. Dez delas assinaram uma nota reclamando de “medidas desproporcionais de contenção” nas portarias 120 e 125, que dispõem sobre o fechamento das fronteiras.

“Reconhecemos a necessidade de restrição à entrada e saída de pessoas para conter a ação de doenças. A questão é o quanto isso não abre uma janela de oportunidade para o governo avançar em ataques a direitos que já estavam em curso”, afirma Camila Asano, diretora de programas e incidência da Conectas, uma das organizações signatárias.

Uma das críticas é que, pelas portarias, quem descumprir as regras está sujeito à deportação imediata, contrariando a Lei de Migração brasileira, que prevê direito à ampla defesa nesses casos.

Outra punição prevista é a inabilitação do pedido de refúgio de quem sofre perseguição em seus países e cruza a fronteira.

“O direito a pedir refúgio e a não ser devolvido ao país de origem é garantido pela lei brasileira e por tratados internacionais”, diz Asano.

Ela acrescenta que países como Uruguai e Canadá também fecharam fronteiras, mas garantiram esse direito. “Eles deixam claro que não aceitam viagem de turismo ou negócios, mas essa proteção à vida continua.”

Há ainda mais uma preocupação, afirma ela, com o brasileiro não como receptor de migrantes, mas como viajante.

“O Brasil tem sido visto como um pária no combate ao coronavírus. O presidente Bolsonaro tem estampado manchetes no mundo todo como um dos únicos que negam a seriedade da crise", avalia.

"Nos preocupa que, quando as restrições de locomoção começarem a cair, o Brasil seja visto como um país pouco confiável e perigoso para futuras ondas de contaminação. Isso pode impactar a possibilidade de brasileiros se moverem pelo mundo, não só como migrantes, mas como viajantes de turismo ou negócios."

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