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'Perdemos a esperança de que a Europa vá conter Orbán', diz jornalista húngaro

Para Gábor Horváth, que dirigiu principal jornal independente da Hungria, governo repete práticas de Stálin

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Bruxelas

A União Europeia não vai impedir que o premiê da Hungria, Viktor Orbán, imponha uma mordaça à mídia e à oposição no país, diz Gábor Horváth, editor de Internacional do jornal húngaro Népszava (Voz do Povo, em húngaro).

“Perdemos a esperança na União Europeia há muito tempo. Havia a ilusão de que eles poderiam frear Orbán, mas logo percebemos que a Hungria não é muito importante para a Europa”, afirma o jornalista, sobre a reação da Comissão Europeia à lei que deu ao primeiro-ministro poder de governar por decreto por tempo indeterminado, nesta segunda (30).

Segundo ele, com a nova lei, “a autonomia política dos cidadãos e dos governos locais simplesmente acabou”.

O premiê húngaro, Viktor Orbán, durante a sessão no Parlamento que aprovou a nova lei
O premiê húngaro, Viktor Orbán, durante a sessão no Parlamento que aprovou a nova lei - Zoltan Mathe - 30.mar.20/Reuters

A nova regulação também é especialmente ameaçadora para jornalistas, diz Horváth. Prisão de até cinco anos pode ser imposta a quem divulgar qualquer informação que “limite a capacidade do governo de combater a pandemia de coronavírus”. E é o governo que decide quando isso ocorre.

A ameaça criminal é um passo a mais no cerco à mídia, que até então usava pressão econômica, segundo Horváth.

Desde que assumiu o poder, em 2010, Orbán aumentou o controle sobre veículos públicos e passou a estimular a compra de meios de comunicação. “No final de 2018, eles já tinham 80% da mídia húngara. Os que não foram estatizados foram comprados por empresários próximos ao premiê”, afirma o editor.

Um amigo de infância de Orbán, Lorinc Meszaros, tornou-se dono do maior grupo editorial da Hungria, e empresários próximos ao premiê compraram todos os jornais regionais dos 19 condados húngaros.

Em 2016, foi a vez do maior jornal independente, Népszabadság, do qual Horváth era diretor-adjunto. Foi comprado por apoiadores de Orbán e fechado.

O americano de origem húngara Andrew Vajna, comissário do governo para o cinema nacional, tornou-se proprietário do segundo maior canal de TV local (TV2).

Nesta terça (31), o empresário Miklós Vaszily, considerado próximo de Orbán, comprou 50% do maior site de notícias do país, o Index.hu.

Horváth ressalva que não há presos políticos nem jornalistas assassinados ou fisicamente ameaçados na Hungria, mas diz que é cedo para prever o impacto da nova lei: “Se começarem a nos levar aos tribunais, sob ameaça de prisão, tudo pode mudar rapidamente”.​

O premiê Viktor Orbán concentra poderes desde que assumiu o governo, em 2010. A lei de emergência acelera esse movimento? A situação já era dramática. No final de 2018, o grupo ligado a Orbán já tinha 80% da mídia húngara. Os que não foram estatizados foram comprados por empresários próximos ao premiê. A nova regulação é especialmente ameaçadora porque permite prisão de até cinco anos não apenas para quem espalhar informação falsa sobre a pandemia, mas por qualquer informação que limite a capacidade do governo de combater a pandemia de coronavírus. E só o governo tem a prerrogativa de dizer quando isso ocorre.

A Justiça aceitaria uma acusação subjetiva? Teremos que ver, porque o Judiciário na Hungria é parcialmente livre. Nem todos os juízes se recusam a ceder à pressão do governo.

É possível falar em ditadura? Orbán se diz ofendido por acusações de que está abusando do poder e se transformando em ditador. Ele diz que vai devolver os poderes excepcionais quando a pandemia acabar. Mas seu passado levanta dúvidas.

Está falando da onda de imigrações em 2015? Sim, o governo decretou emergência migratória e implantou várias leis. Desde então, nenhum refugiado passa mais pela Hungria, mas a cada seis meses eles renovam as regulações. Eles não precisam de uma emergência para isso. Claro que todos estão com medo.

Desde segunda-feira, já houve medida autoritária na prática? Em outubro, houve eleições locais na Hungria, e a oposição venceu em muitas cidades, inclusive em Budapeste. Nem 24 horas depois de passar a nova lei, o governo basicamente atou as mãos dos prefeitos. Mandou militares para os hospitais e passou a controlar serviços básicos. Os prefeitos não podem aprovar nenhuma resolução sem consenso dos representantes do governo central. Também mandou militares para empresas de telecomunicação e outras companhias estratégicas. Não há como não lembrar um golpe de Estado.

Prefeitos precisam de autorização de Orbán para qualquer medida ou só as relacionadas à pandemia? Qualquer medida. Basicamente, a autonomia política dos cidadãos e dos governos locais não existe mais. A Constituição húngara já centralizava muito, o espaço para ações locais já era pequeno. Agora, simplesmente acabou.

Faz lembrar muito a Hungria comunista, não a dos anos 1980, em que o regime era mais leve, mas a dos anos 1950, de um comunismo muito pesado, de centralização stalinista.

A política de Orbán é comparável ao stalinismo? Certos elementos de autoritarismo e centralização estão sendo ressuscitados muito rapidamente. Mas não dá para dizer que é igual, no sentido de que ainda há algumas ilhas de mídia independente e múltiplos partidos. E é preciso ressalvar que a Hungria não é a Rússia ou a Turquia, não há presos políticos, jornalistas não são ameaçados fisicamente. A censura aparece como pressão econômica.

Hoje na Hungria há apenas um jornal, uma TV e uma rádio que ainda se opõem à opressão.

Há liberdade para trabalhar? É bastante difícil conseguir informação independente e confiável. O governo também dificulta ao máximo a obtenção de informações oficiais.

Há pressão sobre anunciantes? Total. Desde 2010, o Estado é o maior anunciante, seja de suas ações, seja das companhias estatais. E as empresas privadas são desencorajadas de anunciar em mídia independente.

Como sobrevivem? O Voz do Povo foi fundado em 1873, sobreviveu a duas guerras mundiais, diferentes regimes, fascismo, comunismo. É um dos tesouros nacionais.

O governo ainda anuncia nele, e ser um jornal ainda é melhor do que ser um site de notícias, porque os exemplares são vendidos. Isso garante uma receita constante. Cerca de 65% dos nossos exemplares são assinaturas, o que dá estabilidade. No caso dos sites é muito mais difícil, pois a receita vai toda para o Google.

O esforço das pessoas em procurar notícia qualificada, em continuar apoiando a mídia independente, é que vai garantir que ainda exista alguma liberdade no país.

Com a ameaça de prisão, há risco de autocensura? A situação já vinha mal antes, e adquirimos prática em lidar com ela. Quem sobreviveu a esses dez anos se recusa a fazer autocensura. A disposição é de não se render à pressão do governo.

Mas a liberdade ficou mesmo muito reduzida, e é preciso ver o que acontece na vida real. Se começarem a levar jornalistas aos tribunais, sob ameaça de prisão, tudo pode mudar rapidamente.

Sabemos que de alguma forma sobreviveremos, mas o impacto dessa regulação ainda está por vir.

Analistas disseram que a Comissão Europeia foi omissa ao não condenar a lei de emergência. Concorda? Perdemos a esperança na União Europeia há muito tempo. Havia a ilusão de que eles poderiam frear Orbán, mas logo percebemos que a Hungria não é muito importante para a Europa, por um lado. E, para algumas companhias, como multinacionais alemãs, um regime como o de Orbán é proveitoso. Não há greves, não há sindicatos, nem direitos trabalhistas. O governo limita reivindicações, as jornadas de trabalho são ilimitadas.

Perdemos a esperança de que Alemanha ou União Europeia nos ajudariam. Deixaram o problema para que nós o resolvamos.

O curioso é que, depois da aprovação da emergência, a embaixada americana soltou uma nota dizendo que a restrição sobre a mídia nesse momento é contraprodutiva, porque pode enfraquecer a confiança nos líderes. É interessante ver a administração Trump defendendo os direitos humanos na Hungria.

O jornalista húngaro Gábor Horváth - Reprodução ATV Magyarország

Raio-x

Gábor Horváth, 61
É jornalista na Hungria desde 1982. Foi diretor-adjunto do maior jornal do país, Népszabadság, até ele ser comprado e fechado, em 2016. Até 2019, foi editor-chefe do Népszava (Voz do Povo), jornal do qual é editor de Internacional

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