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Quarentena, fome e incerteza nas eleições elevam tensão na Bolívia

Chegada de pandemia muda cenário que apontava para reestabelecimento da normalidade política

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Buenos Aires

A tensão voltou às ruas das grandes cidades da Bolívia com a chegada do novo coronavírus ao país.

Nas últimas semanas, marchas por comida e planos de auxílio a trabalhadores informais, que correspondem a 70% do mercado de trabalho boliviano, ocorreram em Santa Cruz de la Sierra, Trinidad, Cochabamba, Tarija e El Alto.

Até então, reinava uma relativa calma, depois da militarização imposta pela presidente interina Jeanine Añez para conter os enfrentamentos de rua e garantir o início da campanha eleitoral.

O pleito presidencial seguia marcado para o dia 3 de maio.

Assim, tudo apontava para um retorno à normalidade após a crise provocada pelas suspeitas de fraude na contagem de votos, em outubro, pela anulação da eleição que garantiria a Evo Morales um quarto mandato consecutivo e, na sequência, pela renúncia do agora ex-presidente.

Trabalhador municipal desinfeta rua de La Paz
Trabalhador municipal desinfeta rua de La Paz - Aizar Raldes - 4.abr.20/AFP

A chegada da pandemia mudou tudo. Primeiro, as eleições foram suspensas, e uma nova data ainda não foi definida. Depois, o Exército voltou a patrulhar as ruas com vigor, aplicando multas e penas de prisão de 1 a 10 anos para quem violar a quarentena determinada por Añez pelo menos até 15 de abril.

No último dia 25, a presidente interina ordenou que aqueles que não obdecerem ao decreto ou que desinformarem a população sobre o conteúdo da regra serão penalizados e sujeitos a processo criminal por "cometer delitos contra a saúde pública".

A Human Rights Watch (HRW), ONG que defende e pesquisa os direitos humanos, porém, considerou que o texto permite punir críticos do governo e, portanto, torna-se um risco para a liberdade de expressão.

Para José Miguel Vivanco, diretor da HRW, "o governo boliviano aparentemente está tirando vantagem da pandemia para dar a si mesmo o poder de punir qualquer um que publique informação que o governo considere incorreta".

Ele defende um "debate vigoroso como melhor remédio contra informação errada, não a prisão". O decreto diz, ainda, que quem for considerado culpado pode pegar de 1 a 10 anos de prisão.

O número de casos registrados ainda é baixo: 264 infectados e 18 mortos, segundo dados compilados pela Universidade Johns Hopkins até o fim da tarde desta quinta-feira (9).

Mas, de acordo com analistas locais, a chance de haver subnotificações tanto de óbitos quanto de infecções é grande, porque poucos testes são realizados no país.

Hospitais, principalmente em Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra, já operam em capacidade máxima.

"Por enquanto, a população mais pobre só percebe um lado, que é o de não poder trabalhar e de notar que os auxílios dados pelo governo são muito escassos para manter suas famílias", diz o analista político Fernando Molina.

Segundo as regras definidas pelo governo, pessoas com mais de 60 anos recebem US$ 70 (R$ 356) por mês, enquanto grávidas ou pessoas com algum problema crônico de saúde e com crianças cursando a educação primária na rede pública ganham US$ 60 (R$ 305) mensais.

O governo afirma gastar US$ 250 milhões (R$ 1,27 bilhão) com os auxílios, mas há setores aos quais eles não chegam. A última manifestação em Trinidad, no departamento do Beni, reduto de Añez, por exemplo, foi liderada por taxistas, que não têm direito à ajuda.

Os motoristas querem trabalhar nem que seja por apenas um período do dia, mas a quarentena imposta no país impede a circulação de veículos, a não ser os que pertencem a profissionais de saúde ou do setor de alimentos.

"A pandemia começou em péssima hora para a Bolívia, porque estávamos às vésperas de uma eleição, em que um governo legitimado pelos votos ia assumir", diz Molina.

"Agora, Añez, ainda que tenha sua base de apoio, continua sendo muito contestada por outra parte da sociedade, que a considera uma golpista. A polarização que marcou os protestos de 2019 está voltando com força."

O MAS (Movimento para o Socialismo), partido do ex-presidente Evo Morales, assumiu de início uma posição de acordo com a do governo interino.

O líder indígena, em Buenos Aires, onde está na condição de refugiado, disse considerar sensato o adiamento das eleições, "porque a saúde vem em primeiro lugar".

Agora, porém, com a falta de perspectiva de quando o novo pleito será realizado, voltou a disparar contra Añez, criticando o desamparo dos mais pobres e exigindo que a ajuda do governo chegue a todos.

As últimas pesquisas realizadas antes da chegada do coronavírus à Bolívia apontavam para um segundo turno entre o candidato de Evo, Luis Arce, e Carlos Mesa ou Añez, nesta ordem.

Segundo o instituto Captura Consulting, 57% dos bolivianos dizem não ter como se sustentar durante toda a quarentena.

O mesmo levantamento mostrou que menos de 20% da população têm condições de realizar seu trabalho de casa.

A consultora Oxford Economics afirma que a Bolívia é o país mais vulnerável da região para conter a pandemia, posição corroborada por Rolando Tellería. O analista político diz que, hoje, "há mais gente preocupada com como vai sobreviver sem recursos do que com a doença".

"Poucos têm noção do que o coronavírus pode causar. Mas, gradativamente, temos mais gente infectada, ou seja, vai aumentando a consciência do perigo, e há quem pense que ou vai morrer da doença ou de fome. A fome assusta mais por enquanto, porque é algo que os bolivianos pobres sempre conheceram."

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