Se tempos desesperados pedem medidas desesperadas, como dita o aforismo tornado clichê barato, não seria de se estranhar um país duramente castigado pela pandemia do novo coronavírus fechar suas fronteiras.
O cálculo preciso de quando isso seria possível é o maior drama para governantes, lidando com uma doença nova e algo imprevisível. A até aqui bem-sucedida experiência em Singapura mostra que atos mais draconianos são necessários quando chega uma segunda onda da Covid-19.
Os chineses continentais adotaram a ideia a partir do momento em que disseram ter controlado a epidemia autóctone, virtualmente fechando o país a estrangeiros, mesmo aqueles com visto de residência.
O problema nessa joint-venture entre a Ceifadora e o Tinhoso é que o último adora os detalhes. Quando o presidente que anuncia a suspensão de toda a imigração para os Estados Unidos é Donald Trump, é natural que sinais de alarme soem.
O coronavírus, afinal, poderá fazer para o presidente o que seu fracassado muro não fez: dar a impressão de que os EUA estão fechados, ensimesmados no delírio nativista do "America First". A Covid-19 não acabará com a globalização, mas ela inevitavelmente sofrerá danos.
Afinal de contas, a eleição é logo ali, em novembro, e um acuado Trump faz o que pode: apoia, a exemplo de seu seguidor Jair Bolsonaro no Brasil, a "população comum" contra a "ditadura dos governadores" e suas medidas de distanciamento social.
Não que as políticas antiimigratórias do americano tenham sido inócuas, já que a concessão de vistos caiu 25% do 2016 antes de sua posse até 2019. No ano passado, 462,4 mil pessoas foram autorizadas a morar nos EUA, para trabalhar ou estudar.
Mas essa conta não inclui os irregulares, alvo da retórica presidencial. O propalado muro na fronteira com o México, símbolo máximo de sua xenofobia, até aqui não passou da troca de estruturas defensivas já existentes.
Não se nega a eficácia dessas barreiras em áreas menores. Jerusalém viu cair a violência política desde que a Cisjordânia começou a ser encaixotada nos anos 2000.
Outro arauto do populismo nacionalista encarnado em Trump, o húngaro Viktor Orbán, reduziu a entrada de imigrantes em seu país em 2015 com uma cerca: de 4.500 casos diários, a média caiu para 15.
Orbán, como se sabe, ganhou poderes extraordinários do Parlamento enquanto a crise durar. Seus defensores sugerem que isso não o torna um ditador, já que a licença pode ser cassada (por um Parlamento servil?) e que a pandemia uma hora irá arrefecer, encerrando o período de exceção.
Pode ser, mas exatamente como Trump ou os arroubos golpistas de Bolsonaro, o histórico inspira vigilância redobrada sobre a eternização de práticas que venham de encontro ao que o candidato a autocrata da vez defenda.
Se a ditadura de Pequim é o modelo para o qual se deve olhar em termos de pandemia, basta ver a onda de abusos discriminatórios contra estrangeiros na hora em que o vírus deixou de ser apenas um problema da província de Hubei e, no discurso oficial, virou algo que cidadãos chineses que voltam ao país podem carregar.
Olhando para o lado político, basta ver a onda de prisões de líderes dos protestos anti-China que dominam a paisagem política do território especial de Hong Kong desde meados do ano passado.
Ativistas oposicionistas veem Pequim aproveitando o clima de restrições na região para garantir o pulso de ferro que vinha sendo contestado.
Isso sem contar toda a discussão acerca do futuro do controle social por meio de tecnologias usadas para combater a Covid-19.
Com tudo isso, parecem justificadas as preocupações com o porvir do trato americano a estrangeiros, ao menos enquanto Trump estiver no poder.
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