Antivacinistas, anticapitalistas e neonazistas impulsionam atos contra confinamento na Alemanha

Passeatas incluem membros do AfD, partido nacionalista com posições anti-imigração

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Katrin Bennhold
Berlim | The New York Times

Diante do edifício do Parlamento alemão, um cozinheiro vegano famoso agarrou o microfone e gritou que estava “disposto a morrer” para impedir as elites egoístas de usarem a pandemia para derrubar a ordem mundial.

A alguma distância, um grupo de mulheres discutia como Bill Gates estaria conspirando para obrigar a população a ser imunizada à força.

Jovens agitando cartazes com a capa da Constituição alemã gritavam “abaixo a ditadura do corona!”. Poucos usavam máscaras, e as máscaras que se viam traziam slogans como “a mordaça de Merkel”.

A Alemanha é saudada como o melhor exemplo de bom controle da pandemia na Europa, mas no mês passado começou no país um movimento eclético de protesto com algumas dezenas de pessoas promovendo passeatas contra as restrições impostas devido ao coronavírus.

O movimento cresceu e hoje abrange mais de 10 mil manifestantes em cidades espalhadas pelo país.

Attila Hildmann, um dos organizadores do protesto, discursa contra as restrições do governo alemão
Attila Hildmann, um dos organizadores do protesto, discursa contra as restrições do governo alemão - Fabrizio Bensch - 16.mai.2020/Reuters

A única força que vem movendo a mobilização é a extrema direita alemã, especialmente o partido Alternativa para a Alemanha, ou AfD, marginalizado pela pandemia.

Os líderes do AfD agora enxergam os protestos como um primeiro passo para voltarem a ganhar mais espaço na discussão nacional e os estão aproveitando para posicionar sua mensagem para os próximos meses, quando o país terá que lidar com empregos perdidos e uma economia que levou uma surra.

“A crise vem vindo, ela ainda não chegou”, disse Nicolaus Feste, líder da seção do AfD em Berlim, que no sábado (16) participava de um protesto perto do Portão de Brandemburgo. “Em algum momento no futuro próximo haverá muita gente desempregada.”

Ao lado de antivacinistas, anticapitalistas e cidadãos comuns preocupados com a perda de empregos e a segurança nas escolas e creches reabertas, as passeatas vêm atraindo neonazistas, hooligans e, de maneira constante, membros do AfD, partido conhecido principalmente por seu nacionalismo estridente e por posições anti-imigração.

O AfD raramente organiza os protestos. Mas esse partido e algumas formações de extrema direita ainda mais radicais estão tentando capitalizar em cima da insatisfação popular, começando a se posicionar para encarar um cenário político que pode se tornar muito mais sombrio dentro de alguns meses se a economia deteriorar mais, como prevê a maioria dos economistas.

“Quando a depressão chegar e as pessoas começarem a realmente sentir seus efeitos, vão começar a perguntar: ‘Com quem vamos dividir o pouquinho que nos restou? Quem é daqui e quem não é?’”, comentou o publisher de extrema direita Götz Kubitscheck, mais destacado ideólogo da chamada Nova Direita alemã.

E então, ele previu em entrevista recente, “vai virar uma questão de identidade”.

O órgão de inteligência doméstica alemã, que recentemente classificou como extremistas o Instituto para a Política de Estado, de Kubitschek, e um grupo de políticos do AfD ligados a ele, está preocupado.

“Estamos vendo uma tendência de extremistas, especialmente radicais de extrema direita, utilizarem as manifestações para aguçar tensões”, disse o presidentre do órgão, Thomas Haldenwang, falando no domingo (17) ao jornal alemão Welt.

“Há um risco de radicais da extrema direita, com sua imagem de quem é o inimigo e suas ambições de subverter o Estado, assumirem a liderança de um movimento que por enquanto vem congregando principalmente cidadãos leais à Constituição.”

“Nosso receio é que extremistas estejam fazendo uso da situação atual exatamente como fizeram com a chamada crise dos refugiados”, disse Haldenwang.

Alguns já vêm comparando os protestos do coronavírus aos protestos contra a crise dos refugiados, em 2015, quando o movimento Pegida (Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente) atraiu centenas e depois milhares de pessoas para passeatas realizadas semanalmente, antes de se converter em poderosa força alimentadora do radicalismo de extrema direita.

“Nós somos o povo”, o slogan associado às passeatas do Pegida, também são palavras de ordem nos protestos do coronavírus.

Então, como agora, a chanceler Angela Merkel foi saudada como uma líder exemplar que conduziu seu país em meio a circunstâncias extraordinárias.

Mas o ambiente começou a mudar no início de 2016. Um ano mais tarde o AfD tornou-se o primeiro partido de extrema direita a fazer parte do Parlamento federal desde a Segunda Guerra Mundial. Hoje o AfD é o maior partido da oposição e está representado em todas as legislaturas estaduais do país.

Alguns deputados cristãos democratas, do partido de Merkel, falam reservadamente de uma sensação de déjà vu e temem que até o outono de 2021, quando está prevista a próxima eleição, o AfD possa voltar a devorar votos conservadores.

A pandemia chegou à Alemanha num momento em que a influência da extrema direita —e sua capacidade de infiltrar o sistema político do nível local para cima— era forte. Os partidos do mainstream, incluindo a CDU, de Merkel, estão preocupados com a possibilidade de perder votos.

Ainda em fevereiro as consequências de uma eleição inconclusiva no Estado oriental da Turíngia, onde uma seção especialmente radical do AfD virou o segundo partido mais forte, acabaram derrubando o sucessor escolhido da chanceler em Berlim.

A situação mudou quando o coronavírus começou a se propagar. Praticamente da noite para o dia os alemães se uniram em torno da chanceler e do "lockdown" de um mês que desacelerou a disseminação do vírus e permitiu ao país passar pela primeira onda de infecções com um total de mortes relativamente baixo.

Agora, porém, esse próprio sucesso tornou-se um dos elementos que vêm alimentando os protestos.

“Disseram-nos que esse vírus era tão perigoso que tínhamos que abrir mão de nossas liberdades democráticas”, comentou Sabine Martin, que tem dois filhos e marchou em Berlim no sábado pelo terceiro fim de semana consecutivo. “Mas não somos idiotas. Nossos hospitais estão metade vazios.”

“Não tenho medo desse vírus”, acrescentou. “Tenho medo da recessão.”

Alguns chamam a isso o paradoxo da prevenção: como a Alemanha teve êxito relativo na contenção da doença, está ficando mais difícil convencer as pessoas que a pandemia representa um perigo real e mais fácil para populistas e teóricos conspiratórios transmitirem narrativas enganosas.

“Esta chamada pandemia não passa de uma gripe”, ironizou um deputado do AfD, Robert Farle, que vem participando dos protestos em sua cidade, Magdeburgo, no leste do país.

Apesar de fazerem muito barulho, os manifestantes ainda formam uma minoria pequena. Uma sondagem recente constatou que dois em cada três alemães estão satisfeitos com a resposta do governo à crise.

Seis em cada dez dizem que não é preocupante se determinadas liberdades precisarem ser restritas por mais tempo. O partido de Merkel continua a ser o mais popular do país, com quase quatro em cada dez eleitores dizendo que o apoiarão —o nível mais alto desde 2017.

Mas a Comissão Europeia prevê que a economia alemã encolha 6,5% neste ano, em seu pior desempenho desde a Segunda Guerra Mundial. A popularidade do AfD, que no início da crise havia caído para menos de 10%, está começando a subir.

Muitas pessoas temem que uma recessão prolongada atraia mais eleitores para o partido, que encontrou a maior parte de seu apoio no leste do país, ex-comunista.

Mas os maiores protestos nas últimas semanas têm ocorrido em Stuttgart, o rico coração da indústria automotiva alemã, no oeste.

Nos sete anos passados desde a fundação do AfD, a Alemanha teve crescimento econômico e baixo índice de desemprego constantes, comentou Matthias Quent, especialista no extremismo de direita e diretor de um instituto que estuda a democracia e a sociedade civil.

“Não sabemos qual será a cara do AfD numa recessão”, disse Quent. “Isso me preocupa. Historicamente falando, as grandes recessões tendem a alimentar narrativas populistas.”

Tradução de Clara Allain

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