Descrição de chapéu Coronavírus

Ativistas digitais expõem abusos de governos no combate ao coronavírus

Iniciativas denunciam mão pesada de diversos países na luta contra Covid-19

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São Paulo

Em Marrocos, o ativista Omar Naji foi preso por violar o estado de emergência decretado pelo governo em razão da Covid-19. A acusação: denunciar a apreensão de mercadoria de vendedores ambulantes pela polícia.

Na Grécia, refugiados de países africanos e asiáticos são agredidos por forças de segurança se tentarem sair de seus acampamentos para comprar comida.

Filhos de trabalhadores migrantes embarcam de volta para seus estados de origem após passarem semanas sem conseguir se locomover na Índia, em razão do 'lockdown' - Sam Panthaky/AFP

Em Nova York, policiais pedem educadamente a frequentadores do Central Park que cumpram as regras de isolamento, mas moradores da periferia que saem às ruas são agredidos.

Esses casos foram expostos pelo Covid State Watch (Observatório Estatal da Covid), criado em março para dar publicidade a acusações de abusos cometidos pelo Estado sob o pretexto de combater a pandemia.

Iniciativas parecidas surgiram nas últimas semanas nos EUA, Reino Unido, África do Sul, França, Índia e Austrália. A Folha não encontrou nenhum no Brasil.

Alguns desses projetos foram criados por ONGs já estabelecidas há anos. Outros são tocados por ativistas que se baseiam apenas na força das redes sociais.

“Estados usam crises para ganhar poderes e buscam mantê-los quando elas terminam. Depois que as manchetes tiverem mudado, governos vão tentar silenciosamente incorporar ações tomadas no momento de emergência”, diz a advogada australiana Eda Seyhan, 30, que criou o Covid State Watch em março com uma colega francesa.

Seyhan cita o exemplo dos atentados do Estado Islâmico na França, em 2015, que deixaram 130 mortos e levaram à decretação de estado de emergência.

“Em 2017, o estado de emergência foi revogado, mas muitos dos seus poderes foram incorporados em uma nova lei antiterrorismo, que inclui a possibilidade de fechar mesquitas ou de proibir pessoas de saírem de suas cidades citando vagas razões de segurança”, afirma Seyhan.

Na Índia, o governo nacionalista hindu do primeiro-ministro Narendra Modi já era criticado por entidades antes da pandemia por seus avanços contra direitos civis. Entre eles, uma nova lei que facilita a obtenção de cidadania por imigrantes, mas exclui muçulmanos.

Para monitorar o maior “lockdown” do planeta, instituído repentinamente na Índia, dois ativistas de 28 anos de Bhopal, no norte do país, criaram o CPAP (projeto de fiscalização policial e de justiça criminal, na sigla em inglês).

Pelo Twitter, a advogada Nikita Sonavane e seu colega Ameya Bokil têm exposto atos de repressão contra minorias e trabalhadores informais.

“O 'lockdown' é importante para a saúde pública, mas temos visto uso excessivo de força policial bruta, especialmente num país com uma enorme parcela da população dependente do trabalho informal”, afirma Bokil.

Os advogados apontam mão pesada de governos regionais contra trabalhadores migrantes, que não conseguiram voltar a seus estados de origem em razão da interrupção abrupta do transporte no país.

Parte do arcabouço jurídico que está sendo usado na Índia, afirmam eles, vem de leis resgatadas da era colonial, quando o Reino Unido restringia o deslocamento interno sempre que havia ameaça de revoltas nacionalistas.

Segundo Sonavane, a retórica de apoiadores de Modi tem sido a de apontar que comunidades muçulmanas carentes são vetores para a difusão do vírus.

“O primeiro-ministro não disse isso pessoalmente, mas ele não tem feito nada para refutar essa narrativa”, afirma ela.

Em diversos países, o remédio institucional adotado para combater o coronavírus tem sido a oficialização de situações de estados de emergência.

Eles podem adquirir formas mais brandas, como a dispensa de procedimentos licitatórios no Brasil, ou mais duras, caso da Hungria, em que o Parlamento deu poderes para o primeiro-ministro, Viktor Orbán, governar por decreto.

Para evitar que muitas dessas medidas caiam no vazio, sem acompanhamento internacional, o Centro para Direitos Políticos e Civis, baseado em Genebra (Suíça), criou uma ferramenta online de acompanhamento de estados de emergência pelo mundo.

“Mesmo quando uma situação de emergência é proclamada, não significa que os Estados podem fazer o que quiserem. Há regras que precisam ser seguidas”, afirma Lazarie Eeckeloo, uma das responsáveis pela criação da ferramenta.

De acordo com o levantamento da entidade, 84 países haviam decretado medidas excepcionais até a quarta-feira (6).

Destes, apenas 13 notificaram formalmente a ONU, como é exigido. “A notificação torna mais fácil o acompanhamento dessas medidas pela comunidade internacional”, diz ela.

Eeckeloo afirma que medidas excepcionais podem ser úteis se adotadas com parcimônia.

“Declarar um estado de emergência pode ser importante para os governos implementarem medidas fortes de controle à epidemia. Mas devem ser temporárias e proporcionais”, afirma.

Segundo ela, mesmo democracias têm uma tendência de acumular poder e pesar a mão nesse momento.

Uma delas é o Reino Unido, onde duas entidades de direitos humanos se uniram para criar o projeto Policing the Corona State (policiando o Estado corona).

Um dos responsáveis é Kevin Blowe, que tem mais de 30 anos de experiência em ativismo com comunidades marginalizadas.

Segundo ele, houve uma mudança de percepção de parte da população, especialmente na classe média, sobre a importância de uma abordagem policial mais dura.

“Nos primeiros dez dias de restrição, vimos muito apoio à polícia. Mas em seguida houve reação de um público que estava tendo sua primeira experiência com um policiamento mais agressivo. Para muita gente, ser parado nas ruas e revistado é uma coisa nova”, diz Blowe.

Na periferia de cidades como Londres ou Manchester, afirma, pouca coisa mudou. Ele diz que praticamente todos os dias recebe informações de ativistas sobre abusos policiais contra jovens.

Blowe afirma não ser contrário a medidas duras de isolamento social, mas à forma como elas foram definidas em lei, de maneira muito vaga.

“A legislação é tão ampla que você abre a possibilidade de a polícia executá-la como quiser. Hoje, uma pode ser abordada de maneira agressiva apenas porque está com cara de doente.”

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