Atos contra racismo ignoram toques de recolher, e EUA veem cenas de barbárie

Protestos e confrontos ocorrem em ao menos 70 cidades e deixaram até agora 4 mortos

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São Paulo

Em cima de um carro da polícia destruído, um manifestante pula repetidas vezes. Rodeado por centenas de pessoas, ele abre os braços e se joga em cima das luzes de emergência da viatura. Parece uma das cenas finais de "Coringa", mas é Nova York em mais uma noite de protestos em diversas cidades dos EUA.

No quinto dia consecutivo de atos pelo fim da violência policial contra negros no país, que começou no sábado (30) e adentrou a madrugada deste domingo (31), imagens como essa se multiplicaram, desafiando toques de recolher impostos a mais de 20 localidades e convocações adicionais de soldados da Guarda Nacional.

Novas manifestações seguiam ocorrendo na manhã deste domingo.

Desde quarta-feira, os atos ocorreram em ao menos 75 cidades, segundo levantamento do jornal The New York Times, com registro de quatro mortes e ao menos 1.700 prisões.

Policiais e manifestantes em confronto durante protesto em Atlanta - Elijah Nouvelage - 30.mai.2020/Getty Images/AFP

Assim, as manifestações desencadeadas pela morte de George Floyd, homem negro cujo pescoço foi prensado no chão pelo joelho de um policial branco, já não se limitam a Minneapolis, onde o crime ocorreu, e espalham, ao mesmo tempo, reações contra o racismo e violência nas ruas.

De Los Angeles a Miami e Chicago, os protestos marcados por gritos de "não consigo respirar", frase dita por Floyd enquanto era sufocado, começaram pacificamente antes de se tornarem tumultuosos, com ruas bloqueadas por ativistas, carros incendiados, saques e até espancamentos.

Do outro lado, as forças de segurança reagiram em cenas de barbárie. Em Nova York, dois carros da polícia atropelaram dezenas de manifestantes que tentavam impedir a passagem dos veículos.

Em Atlanta, na Geórgia, dois jovens negros foram arrancados à força de dentro de um carro por policiais que usavam o que parecem ser armas de choque. Nas imagens transmitidas pela CBS, as vítimas não oferecem resistência e, mesmo assim, são tratadas com brutalidade.

Em Salt Lake City, o canal ABC 4 flagrou um agente com escudo empurrando um idoso de bengala. Na mesma cidade, outra cena de selvageria. Em reação a um homem branco que ameaçava manifestantes com arco e flecha, ativistas espancaram o agressor.

Viaturas foram incendiadas na Filadélfia, e lojas, saqueadas em Los Angeles. Agentes em Richmond tiveram de ser hospitalizados devido a ferimentos, e uma pessoa foi morta em Indianápolis, onde um vice-chefe de polícia disse que o departamento recebeu tantos relatos de disparos que perderam a conta.

Além da morte na última madrugada, um homem foi morto em St. Louis, Minnesota, no sábado, ao ficar preso entre dois caminhões, enquanto um deles tentava manobrar para escapar de um bloqueio na estrada. Na sexta, em Detroit, um homem de 21 anos foi morto por disparos feitos de dentro de um carro.

Em Minneapolis, na quarta-feira, Calvin Horton Jr. foi morto aos 43 anos por um tiro disparado perto de uma loja que estava sendo saqueada. Houve também a morte de um segurança de um prédio federal em Oakland, cuja relação com os protestos ainda é avaliada pelas autoridades.

À CNN Melvin Carter, prefeito de St. Paul, cidade vizinha a Minneapolis, pediu “paz, e não paciência”, frase também usada por Keisha Lance Bottoms, prefeita de Atlanta. Ao menos 170 comércios foram danificados durante os protestos em St. Paul, segundo Carter.

Nos últimos dias, muitos jornalistas também foram agredidos pelas forças de segurança —e, às vezes, por manifestantes. Na sexta (29), a fotógrafa Linda Tirado levou um tiro de bala de borracha no olho esquerdo enquanto cobria os atos em Minneapolis.

A repórter Kaitlin Rust, do canal Wave 3 News, e o fotojornalista James Dobson foram alvos de balas de pimenta por policiais que pareciam mirar a jornalista. Ao vivo, ela gritava "estou sento atingida, estou sento atingida".

Nos arredores da Casa Branca, ativistas, por sua vez, atacaram um correspondente do canal Fox News e sua equipe, pegando o microfone do profissional e o atingindo com o objeto.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, defende que as cidades ajam de maneira mais dura contra os manifestantes e acusou o que ele chama de anarquistas e antifascistas de serem os responsáveis pela onda de violência.

Da mesma forma, o secretário de Justiça, William Barr, disse que o movimento foi tomado por radicais de extrema esquerda, que buscam se aproveitar da tragédia e causar destruição.

O ex-vice-presidente Joe Biden, que deverá enfrentar Trump nas eleições de novembro, pediu justiça para a morte de George Floyd e defendeu que o país não permita que novos casos como esse aconteçam. O democrata também pediu que os ânimos sejam contidos.

"Somos uma nação revoltada, mas não podemos deixar que nossa raiva nos consuma. Por favor, fiquem seguros e tomem conta um dos outros", publicou em uma rede social.

As manifestações atingem o país em um momento delicado. Por mais de dois meses, milhões de pessoas tiveram de ficar em suas casas para retardar a propagação do coronavírus, que já matou mais de 100 mil pessoas nos EUA. As medidas adotadas para combater a Covid-19 levaram à pior crise econômica desde a Grande Depressão, com 40 milhões de desempregados.

O debate sobre os planos para reabrir lojas e aliviar restrições em cidades fechadas ficou em segundo plano, agora que a violência policial gerou manifestações de fúria. No entanto, a situação desperta a preocupação de especialistas em saúde, que temem uma nova onda de contágio.

Floyd, a vítima da violência policial que provocou a onda de atos, havia perdido o emprego como segurança em um restaurante por conta das medidas de isolamento social para conter a pandemia do coronavírus.

Nascido em Houston e conhecido pelos amigos como "gigante gentil", foi acusado de assalto a mão armada em 2007 e, em 2009, condenado a cinco anos de cadeia.

Ao deixar a prisão, em 2014, mudou-se para Minneapolis e passou a atuar como segurança. Na última segunda (25), foi detido sob acusação de tentar fazer uma compra com uma nota falsa de US$ 20.

Derek Chauvin, o policial que o sufocou, foi demitido, indiciado e preso na sexta. Caso condenado, poderá pegar até 25 anos de prisão. Os outros três guardas que participaram da ação, Thomas Lane, Tou Thao e J. Alexander Kueng, também serão indiciados.

O estado de Minnesota, onde fica Minneapolis, é um dos mais desiguais dos EUA, segundo critérios de raça. Ali, a taxa de pobreza entre negros (32%) era quatro vezes a de brancos (7%) em 2017, a taxa de desemprego (8%) era mais que o dobro da de brancos (3%) e, enquanto 76% dos brancos tinham a posse do próprio domicílio, entre negros esse percentual era de apenas 24% —a terceira maior diferença do país.

Estudos apontam que privilégios institucionais concedidos a pessoas brancas no estado estão na raiz de tamanhas diferenças entre os dois grupos raciais.

Alguns desses privilégios derivavam das chamadas leis Jim Crow, que legalizaram a discriminação racial em nível local e estadual, a partir do final do século 19, e cuja derrocada, nos anos 1960, foi fruto do movimento pela igualdade em direitos civis nos EUA.

No entanto, os dados de Minnesota não estão distantes da realidade do resto do país, onde os brancos seguem, em média, tendo condições de vida melhores do que os negros.

Com Reuters e The New York Times

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