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Brasileira premiada pela ONU treinou militares para prevenir estupros em missão na África

Comandante da Marinha é conselheira de gênero em operação de paz na República Centro-Africana

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Viçosa (MG)

Quando a comandante Carla Monteiro de Castro Araújo chegou à República Centro-Africana para atuar como conselheira de gênero na Minusca (a missão de paz das Nações Unidas no país), havia uma brincadeira interna de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.

Oficial da Marinha, Carla, 50, chegou em abril de 2019 para substituir a capitão de corveta Marcia Andrade Braga, também brasileira, que tinha recebido naquele ano o Prêmio de Defensoras Militares da Igualdade de Gênero da ONU, maior honraria dedicada a quem trabalha nessa área na organização.

“Eles me falavam: não adianta trabalhar tanto porque você não vai ganhar o prêmio”, conta, rindo. “Isso foi libertador. Porque eu fiz o que achava que tinha que fazer, seguindo meu instinto. Bolei umas estratégias meio loucas, o general olhava para a minha cara, eu achava que ele não ia aceitar. Mas ele dizia: pode fazer.”

A brasileira Carla Monteiro de Castro Araújo fala com crianças na República Centro-Africana durante sua atuação na missão de paz da ONU no país
A brasileira Carla Monteiro de Castro Araújo fala com crianças na República Centro-Africana durante sua atuação na missão de paz da ONU no país - Minusca/Divulgação

Um ano depois, o raio caiu no mesmo lugar: Carla foi escolhida vencedora desta edição do prêmio, ao lado da major indiana Suman Gawani, que serviu no Sudão do Sul.

Trabalhando em um país com um grave conflito em que a violência sexual contra mulheres e crianças é usada como arma de guerra, a brasileira focou o treinamento de pessoas-chave dentro das tropas para atuar com proteção a gênero e infância em seu dia a dia com a população.

Aumentou de 36 para 91 o número desses “pontos focais”, que por sua vez capacitaram outros colegas no mesmo tema. No total, 3.349 militares da ONU receberam o treinamento, de um total de mais de 11 mil que estão no país.

Ao indicar Carla para o prêmio, a Minusca destacou a “facilidade de comunicação” da brasileira, sua “capacidade de motivar a equipe” e de “ir além das funções de sua descrição de cargo” —ela acumulou outras quatro áreas de atuação.

Mãe de duas crianças de 13 e 9 anos, que ficaram com a família, no Rio de Janeiro, Carla deveria ter voltado ao Brasil no mês passado, quando sua missão terminou, mas ainda não conseguiu por causa dos fechamentos das fronteiras devido à pandemia de coronavírus.

Ela e sua colega indiana receberão o prêmio em uma cerimônia online presidida pelo secretário-geral da organização, António Guterres, nesta sexta-feira (29).

A sra. entrou para a Marinha como dentista. Já tinha atuado com a questão de gênero? Não. Mas, pelo meu background na área de saúde, estou acostumada a trabalhar com a parte humanitária. E sou cria de fuzileiro, me apaixonei por essa área operativa e tive muitos colegas que estiveram no Haiti. Sempre quis participar de alguma missão e surgiu essa oportunidade de ser conselheira de gênero.

Eu digo que a perspectiva de gênero está em tudo que a gente faz. Tudo o que acontece afeta de forma diferente homens e mulheres, meninas e meninos. Quando atuamos com proteção a crianças na guerra, por exemplo, existe o componente de gênero: meninos e meninas estão expostos a riscos diferentes.

Quais são as especificidades do impacto de um conflito sobre as mulheres? Qual era a situação na RCA (República Centro-Africana)? Lá tem muito estupro de mulheres pelos grupos armados. Elas caminham muito para pegar lenha, as estradas são no meio da selva, com mato cerrado. Várias delas têm que sustentar a família porque muitas vezes o homem não está presente, morreu no conflito, e elas ficam expostas. As crianças vão sozinhas para a escola, e muitas são sequestradas não só para servir como guerrilheiras, mas para cozinhar, levar recados, ser escravas sexuais.

Ouvi tanta coisa que se eu não filtrar… Não é para estômago fraco. No primeiro mês eu não conseguia dormir com todos os relatórios que recebi. Depois você vê que tem duas opções: ou surta ou foca para conseguir fazer o melhor e ajudá-los. Fui mudando ao longo da missão, ficando mais forte. Saí uma pessoa diferente do que entrei.

Como a sra. enfrentou esses problemas? Eu não conseguiria estar em todo o território, então precisava que cada um daqueles 11 mil militares tivesse esse olhar específico sobre a diferença do impacto do conflito em mulheres e crianças. Queria que, em vez de sair só procurando grupos armados, eles olhassem para todo o ambiente ao redor, para os civis que queremos proteger.

Uma das minhas bandeiras foi aumentar a rede de pontos focais, que são pessoas-chave dentro dos contingentes militares voltadas para problemas de proteção e de gênero. Elas eram meus contatos dentro daquela bases, que estão em contato com a população e podem impedir um grupo armado de atacar mulheres, de sequestrar crianças.

Eles aceitaram bem essas diretrizes? A grande sacada foi um curso que criei, em inglês e em francês, para capacitar esses pontos focais a transmitir o conhecimento para suas tropas. Porque a melhor pessoa para sensibilizar alguém de uma nacionalidade é um colega da mesma nacionalidade. Eles dividem a mesma linguagem, as mesmas piadas. E não adianta ter vários diplomas se você não conseguir motivar. Quando a gente tem paixão por um assunto, a gente transmite isso.

Houve denúncias de que, entre 2013 e 2015, capacetes-azuis teriam abusado sexualmente de civis na RCA. Como a sra. trabalhou essa questão? Uma das minhas funções era cuidar disso. Temos uma política de tolerância zero, extremamente rigorosa, e tentamos usar todos os mecanismos para que não ocorra de novo. Isso vale também para o sexo consensual. Para militares de alguns países, namorar alguém da comunidade local não é violência. Mas explicamos que, para a ONU, qualquer relacionamento desse tipo é abuso, por causa da diferença de poder que há ali.

Além dos treinamentos, fazemos reuniões semanais para verificar esse tipo de denúncia. Todos os casos são investigados, e a ONU tem um site de transparência que traz informações sobre eles.

Comecei também a desenvolver um projeto para quantificar o risco da ocorrência desse problema em determinadas localidades e contingentes. Não deu tempo de terminar, vai ficar para minha sucessora, que, aliás, será outra brasileira.

Qual é o status do conflito atualmente? Teoricamente é uma região de pós-conflito, mas a gente ainda vê vários conflitos acontecendo. São cerca de 15 a 18 grupos armados maiores, fora um monte de outros pequenos. Em fevereiro do ano passado, 14 deles assinaram um acordo de paz, mas existem dissidências dentro desses grupos. O processo de desarmamento está sendo planejado por setores do país.

Na última viagem que fiz, no setor leste, grupos armados ainda circulam livremente. Então é um processo que está sendo feito. Vira e mexe a Minusca é atacada, a gente perde um colega.

Dos 85 mil servidores uniformizados das Forças de Paz, só 6,4% são mulheres. O que tem sido feito para aumentar esse número? A ONU já percebeu que é uma necessidade e tem uma política bem forte de incentivo às mulheres nas operações. O que eu vejo é que falta um investimento de base e muitos países não têm mulheres qualificadas o suficiente para enviar.

No meu discurso do prêmio, farei um pedido aos países-membros para que invistam nas mulheres, não só no ingresso delas, mas ao longo de toda a carreira. Se o Brasil não tivesse me dado condições de me qualificar, eu não estaria aqui.

Que vantagens há em enviar mulheres para essas operações? A gente consegue mais conexão com a comunidade local. Da última vez que fui a campo, estava com um intérprete homem. Só de haver um homem ali, as mulheres ficam mais caladas, não se abrem. Além disso, quando elas veem uma mulher fardada trabalhando com colegas homens, e até dando ordens para eles, elas percebem que é uma realidade possível.

Na nossa atuação para prevenção de Covid-19, o trabalho das militares mulheres com as mulheres locais surte mais efeito. E tentamos torná-las parte ativa do processo. Deixei um modelo de máscara para elas fazerem com tecidos africanos. Melhor que chegar doando 300 máscaras é que elas vejam que seu próprio trabalho ajuda a manter a saúde de todos.

Como a sra. reagiu ao prêmio? Foi uma surpresa, até por ser minha primeira missão. Trabalhar em um ambiente internacional, com colegas de várias culturas, foi um desafio muito grande. Te confesso que em alguns momentos deu vontade de largar tudo. Liga um filho chorando, você se pergunta: "Eu estou doida, o que estou fazendo aqui? Será que estou no caminho certo?".

Mas fui vendo o trabalho dando frutos e essa foi a maior recompensa. O prêmio foi a “cerejinha do sundae”, o que me mostrou que a gente tem mesmo que fazer o que acredita.

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