Descrição de chapéu Coronavírus

Com medo da China, família desvia para os EUA e acaba presa no epicentro da pandemia

Americanos contabilizam mais de 1,4 milhão de casos enquanto chineses somam 84 mil

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Washington

A família de Ana Lúcia Lico estava de férias no Vietnã quando decidiu que não voltaria para casa, em Pequim.

A brasileira tinha se mudado para a China com o marido e os dois filhos americanos em agosto de 2019 e tentou agir rápido quando a potência asiática começou a anunciar restrições por causa do coronavírus.

Era fim de janeiro e, segundo as autoridades chinesas, já havia cerca de 570 pessoas infectadas e pelo menos 17 mortes por Covid-19 no país.

Aos 51 anos, Ana Lúcia diz que só entendeu a gravidade do cenário quando as escolas chinesas anunciaram que não retomariam as aulas até segunda ordem.

Gabriel Lico Bickham, 16, Tim Bickham, 51, Ana Lúcia Lico, 51, Lucas Lico Bickham, 13, no Vietnã, em janeiro de 2020
Gabriel Lico Bickham, 16, Tim Bickham, 51, Ana Lúcia Lico, 51, Lucas Lico Bickham, 13, no Vietnã, em janeiro - Arquivo pessoal -jan.2020

Só com roupas de verão na bagagem, mudou as passagens e a rota da família para o inverno de Washington, capital dos EUA, onde havia morado com o marido por 16 anos.

Foi encorajada pelos relatos dos amigos na China. Eles descreviam o fechamento do comércio e regras rigorosíssimas de isolamento social, enquanto o lado americano ainda estava nas ruas, com número de casos registrados na ordem de dezenas e nenhuma morte confirmada até então.

"Não passava pela nossa cabeça que aconteceria nos EUA o que estava acontecendo na China", diz a brasileira.

O plano era ficar na região de Washington até a situação melhorar do outro lado do mundo e, então, voltar a Pequim. "Achamos que seria coisa de duas semanas."

Nesta segunda-feira (18), Ana Lúcia e família completam 106 dias sem poder sair dos EUA, enquanto o país já contabiliza mais de 1,4 milhão de casos e quase 90 mil mortes por Covid-19.

A China, por sua vez, registra 84 mil diagnósticos e 4.600 vítimas, segundo dados oficiais.

Na semana passada, os chineses começaram a relaxar as regras de isolamento diante da aparente redução da curva de transmissões.

As fronteiras entre EUA e China, porém, seguem fechadas e, apesar de diversos estados americanos já terem retomado parte das atividades, especialistas alertam que a reabertura precoce e sem o índice de testagem desejado pode causar uma segunda onda de contágio.

Ana Lúcia diz que mudar os planos é quase rotina na sua família, mas que, apesar das dificuldades e projeções negativas, prefere cumprir a quarentena nos EUA.

"Na China o sacrifício não é cronológico, é de carne, de espírito. Nos EUA, temos mais recursos, acesso livre à internet [a China bloqueia sites como YouTube e redes sociais], conhecemos mais pessoas e temos uma rede de amigos para acionar mesmo a distância. Me sinto mais segura."

A família se mudou para Pequim no ano passado, após o marido de Ana Lúcia, Tim Bickham, receber proposta para dirigir na cidade um escritório da empresa em que trabalha.

Com 51 anos, ele é advogado especialista em propriedade intelectual e afirma acreditar que ganharia mais projeção se morasse em território chinês. Mas precisou convencer a mulher. Pela segunda vez.

O casal se conheceu em um congresso no Rio de Janeiro, no fim da década de 1990.

Depois de um período de namoro a distância e uma primeira visita a Washington na véspera do 11 de Setembro de 2001, Ana Lúcia se mudou para os EUA um ano e meio depois, já grávida do primeiro filho.

A mudança brusca não era seu projeto inicial e, quase 20 anos depois, ela afirma que não queria repetir o roteiro para um país ainda mais longe de seus pais, que vivem no Brasil.

A negativa a Pequim também foi a primeira reação dos filhos, Gabriel e Lucas, mas todos acabaram mudando de ideia após uma visita à cidade em abril do ano passado.

"Não queria me mudar para a China de jeito nenhum, mas, quando a gente viu a escola e o bairro em que iria viver, mudei de ideia", conta Lucas, 13, em português fluente.

Gabriel, 16, acrescenta que a ideia de aprender uma nova —e terceira— língua o anima, mas, ao contrário dos pais e do caçula, preferia passar a quarentena em Pequim.

"Quando os EUA começaram a ficar pior do que a China em números de casos e óbitos, pensei se não seria melhor voltar para a China, já que lá o número de casos estava melhorando. Meus amigos já estão liberados para se encontrar, e as atividades do dia a dia estão voltando pouco a pouco por lá", diz Gabriel.

A família está vivendo na casa em que costumava morar em Alexandria, a aproximadamente 10 km do centro de Washington, e que estava sob cuidados de uma amiga até então.

As crianças têm seguido aulas online da escola internacional que frequentavam em Pequim —a instituição deve manter o formato mesmo quando reabrir as instalações, justamente para alunos que estão impedidos de entrar no país devido às restrições da pandemia.

Tim tem trabalhando de casa e não teve sua renda afetada. Até o fim de 2018, Ana Lúcia era diretora-executiva da Abrace (Associação Brasileira de Cultura e Educação), instituição dedicada à promoção e integração da comunidade brasileira nos EUA.

A família pretende retornar a Pequim quando as viagens entre EUA e China forem normalizadas e, então, se preparar para a rotina ainda desconhecida sob o tal novo normal pós-pandemia.

Tim acredita que a quarentena o ensinou a importância do contato físico, pouco usual entre americanos, e faz uma projeção para os próximos meses que soa quase como torcida para quem vai viver como expatriado.

"Quando voltarmos a Pequim, acho que as pessoas terão mais noção de comunidade e também darão mais importância ao relacionamento com quem convivem diariamente."​

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