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Diário de confinamento: 'A fábula do terrorista e da marquesa'

Agressões gratuitas, tretas desimportantes: assim evolui a política espanhola pós-crise

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Barcelona

Dia #76 – Quinta, 28 de maio. Cena: Escutando “Cayetano”, de Carolina Durante.

"No entender nada! Tu como venezolana!"

Hong, 50, gesticula muito com suas luvas de estampa de flores. Nunca vi sua cara, mas os olhinhos amendoados se apertam num sorriso.

Como os meus, imagino.

O mercadinho de produtos orientais perto de casa é uma nova descoberta (eu sou japa, não posso sem meus triquetriques). Vou por indicação de um amigo. Na porta, uma mensagem me desanima: atendimento só com hora marcada. Espio, vejo Hong por entre as barbatanas de plástico que fazem o papel de cortina, amareladas pelo tempo, e ela me convida a entrar.

Pablo aparece de preto e camisa cinza, falando em um microfone e gesticulando com a mão enquanto discursa.
Pablo Iglesias, vice-presidente do governo espanhol, discursa no Parlamento, em Madri, em abril de 2020 - Emilio Naranjo - 29.abr.20/ POOL / AFP

"O espanhol é teimoso, deixou a situação ficar muito ruim pra agir", queixa-se. Hong, que já morou em Singapura e na Rússia, ainda assim prefere a Espanha: "Gosto da praia! Do sol! Praia de San Sebastián" —demoro pra entender, as palavras filtradas por um saltitante sotaque e pela máscara azul, mas vou desenhando.

Casada com um basco, ela é exceção entre os chineses que conheço aqui. A maioria favorece o relacionamento entre compatriotas, mesmo nas gerações mais jovens, já nascidas ou criadas na Espanha. Casamentos interraciais não são os mais comuns de ver —ainda.

A Comissão Europeia aprovou na quarta-feira (27) uma ajuda de 750 bilhões de euros (cerca de R$ 4,5 trilhões) para o plano de recuperação pós-Covid-19 no continente. A Espanha é a segunda maior beneficiária (atrás apenas da Itália), com 140 bilhões, sendo 55% em forma de subsídios a fundo perdido.

A notícia foi recebida de maneira positiva, embora se preveja uma crescente polarização entre países europeus do sul (mais afetados pela crise) e do norte (não tão contentes com o bololô de déficits europeus no horizonte).

Enquanto isso, o clima político doméstico vai de mal a pior. Na novela "Chiquititas" em que se transformaram as zilhares de sessões no plenário espanhol (é ligar a tevê e ver político falando, vociferando, fazendo caras), o enredo já saltou para o Fantástico Mundo Paralelo das agressões pessoais (tão pensando que é só aí?).

A principal polêmica-de-comadre da semana começou na quarta. Ao ser reiteradamente chamada de "senhora marquesa" pelo vice-presidente Pablo Iglesias, a deputada Cayetana Álvarez de Toledo, porta-voz do PP, principal partido de oposição, devolveu, sem despentear um fio de suas longas melenas louras: "O senhor é o filho de um terrorista. A essa aristocracia pertence, à do crime político".

Aplausos calorosos de toda sua bancada. A cena parece terapia de casal com torcida. Só falta o "iiiieeeh", "viiiixxxx", "tomaaaa".

De um lado, temos uma marquesa de fato: nascida em Madri e criada entre Londres e Buenos Aires, Toledo ostenta o título nobiliário por herança familiar. Em 2008, com 34 anos, foi eleita deputada pelo PP, e desde então está na área.

Do outro lado, Iglesias, uma das principais e mais controvertidas figuras do atual governo de esquerdas espanhol, com seu rabo de cavalo off-topic (que lhe rendeu o apelido de "coletas", rabicho) e permanente cenho franzido, transformou-se durante a crise no saco de bater favorito da oposição. Já deve ter se acostumado a ser chamado de "comunista", "chavista" e outros istas frequentes nas discussões acaloradas no Congresso. Ah: e "discípulo dos aiatolás do Irã", "afilhado de Nicolás Maduro" e "burro de Tróia", apelidos frescos desta semana, da boca de Toledo.

O pai de Pablo, Francisco Javier Iglesias, de fato foi militante da Frente Revolucionária Antifascista e Patriota nos anos 1970. À FRAP se atribuem seis assassinatos de policiais na época —nenhum deles, com participação de Francisco, cuja única infração no currículo foi distribuir propaganda ilegal sobre o Dia do Trabalho nos idos de 1973. Era então um rapaz de 19 anos vivendo os últimos anos da ditadura franquista; as organizações sindicais seriam legalizadas apenas quatro anos mais tarde, após a morte de Franco.

"A senhora acaba de cometer um delito", respondeu Iglesias no plenário. "Convidarei meu pai a tomar as ações oportunas."

Não será a primeira vez: no ano passado, o jornalista e eurodeputado Hermann Tertsch, vinculado ao ultradireitista Vox, foi condenado a pagar 15 mil euros (quase R$ 89 mil) ao pai de Iglesias por indevidamente conectar seu nome ao assassinato de um jovem policial em 1973, numa "intromissão ilegítima e vulneração do direito à honra, à intimidade e à própria imagem".

Jurisdiquês que poderia significar: calma lá, que o buraco é mais em cima.

Algo assim deve ter pensado a presidente do Congresso, a catalã Meritxell Batet, que perguntou a Toledo se queria subtrair a acusação do diário de sessões (e depois retirou a citação de fato, indiferente ao burburinho de protestos). Esta não só não quis como também insistiu, em um tuíte: "Como se chama ao que milita em uma organização terrorista? Marquês?".

Ora, ora.

Com a palavra, o pai de Iglesias, em franca entrevista: “Que competição. (…) me f*** porque eles cobram com cargos públicos e, no final, pagamos as multas entre todos nós". E agradeceu as palavras de apoio de alguns parlamentares do PP, que, segundo ele, disseram sentir “vergonha” do estilo “cayetaner” de ser (por coincidência, “cayetano”, na linguagem popular, é sinônimo de burguês, aristocrata, privilegiado).

Voltando à mercearia chinesa num bairro qualquer de um planeta qualquer. O marido basco, me conta Hong, "fala muchas línguas"! E em que língua vocês se conheceram?, pergunto. "Chinês! Em casa falamos em chinês.…"

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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