Dia #67 – Terça, 19 de maio. Cena: com muito custo, o governo consegue negociar uma prorrogação de 15 dias do estado de emergência.
"Desce e sobe, empina e tira onda..."
Diário de bordo, dia 1.894.579 de confinamento domiciliar. Meu compi de apartamento nem entende português pra saber o que diz a letra da Pocah, "Perdendo a Linha". Mas nesta manhã é o que rola na sua playlist enquanto dá seu sanguinho catalão na sessão de musculação na sala de estar.
Aqui na Espanha, na esteira da Anitta, outros que-tales funkeiros brasileiros têm se misturado cada vez mais aos reggaeton e traps (um tipo dark de hip-hop, pra definir de alguma forma) da moda.
Infelizmente, não é só nas playlists de marombêition hispânica que o Brasil tem figurado.
Cada vez mais, imagens do nosso combalido país aparecem nas manchetes dos noticiários locais, mostrando números vertiginosos de contágios, presidente abraçando gente, manifestações e hospitais públicos lotados.
Mesmo para os padrões da crise espanhola, uma das mais dramáticas de toda a pandemia, as imagens chocam.
"Esse presidente de vocês aí é um pouco louco, não?", comenta um amigo italiano que vive em Barcelona.
Um fluxograma se produz em minha cabeça: respondo que "sim" e tenho que desdobrar ou digo que "pode ser, de leve" e mudo de assunto?
"De leve" é uma expressão que não tem tradução literal em espanhol. Não com o nosso sentido desgarrado, malandro ou abstrato.
O espanhol é um ser "zasca". Cortante. Pá-pum. Sem essa de meias-tintas. Quando eu cheguei ao país, tive que me acostumar.
Nesse tom zasca, há cada vez mais médicos espanhóis da atenção primária expressando sua insatisfação.
Não é pra menos. Com o início da desescalada, o fim dos hospitais de campanha e a normalização das UTIs, os postos de saúde são a nova bola da vez na filtragem e gestão dos casos de coronavírus no país.
Os profissionais reclamam de falta de pessoal e de recursos e avisam que a saturação está próxima.
Segundo a porta-voz de Madri, além da insuficiência de equipamento de proteção individual para as equipes, cada médico de atenção primária na cidade pode solicitar atualmente apenas um ou dois exames de PCR por dia. Ou seja: nada.
Durante a desescalada, além de detecção precoce dos casos de Covid, os postos de saúde passam a assumir o rastreamento e o acompanhamento de suas redes de contato.
E quem vai fazer isso? O sindicato de enfermaria espanhol explica que, em média, cada enfermeira (isso, aqui o nome é utilizado no feminino, abarcando tod@s) dos centros de saúde tem 1.900 pacientes sob sua responsabilidade, ou 1.649 se são incluídos no cálculo os hospitais.
O ideal, segundo o sindicato, é não passar de 1.100. "Os centros de atenção primária de nosso país levam anos sofrendo cortes em recursos humanos e materiais", avisa.
Pra agravar a situação, começam a emergir das profundezas do "lockdown", claro, os Outros Pacientes Todos.
Um documento assinado por diversas associações médicas espanholas e divulgado no início de maio alerta para este duplo desafio do setor: dar conta dos pacientes com coronavírus e, ao mesmo tempo, tratar os pacientes de outras enfermidades que estiveram confinados "sem um acompanhamento médico estreito por causa do estado de emergência".
Segundo o informe, a Espanha necessita de pelo menos 88 mil enfermeiras a mais no sistema de saúde para dar conta do novo cenário.
Os profissionais de saúde infectados por coronavírus na Espanha superam hoje os 51 mil.
Segundo Fernando Simón, médico epidemiologista e porta-voz da crise do governo central, a meta é chegar a identificar novos casos de Covid-19 em até 48 horas, em lugar dos mais de seis dias atuais.
"É um objetivo muito ambicioso que veremos pouco a pouco se é possível nas zonas que transitem à fase 1", disse nesta semana, em pronunciamento oficial, arqueando suas fartas sobrancelhas grisalhas sobre ozoinhos vítreos, cansados. De leve.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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