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Diário de confinamento: 'Brasil para espanhol ver'

Infelizmente, não é só nas playlists pop que o nosso país tem aparecido por aqui

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Barcelona

Dia #67 – Terça, 19 de maio. Cena: com muito custo, o governo consegue negociar uma prorrogação de 15 dias do estado de emergência.

"Desce e sobe, empina e tira onda..."

Diário de bordo, dia 1.894.579 de confinamento domiciliar. Meu compi de apartamento nem entende português pra saber o que diz a letra da Pocah, "Perdendo a Linha". Mas nesta manhã é o que rola na sua playlist enquanto dá seu sanguinho catalão na sessão de musculação na sala de estar.

Aqui na Espanha, na esteira da Anitta, outros que-tales funkeiros brasileiros têm se misturado cada vez mais aos reggaeton e traps (um tipo dark de hip-hop, pra definir de alguma forma) da moda.

Enfermeiras aplaudem para agradecer homenagem, no hospital Gregorio Maranon, em Madri, na Espanha - Pierre-Philippe Marcou - 19.mai.20/ AFP

Infelizmente, não é só nas playlists de marombêition hispânica que o Brasil tem figurado.

Cada vez mais, imagens do nosso combalido país aparecem nas manchetes dos noticiários locais, mostrando números vertiginosos de contágios, presidente abraçando gente, manifestações e hospitais públicos lotados.

Mesmo para os padrões da crise espanhola, uma das mais dramáticas de toda a pandemia, as imagens chocam.

"Esse presidente de vocês aí é um pouco louco, não?", comenta um amigo italiano que vive em Barcelona.

Um fluxograma se produz em minha cabeça: respondo que "sim" e tenho que desdobrar ou digo que "pode ser, de leve" e mudo de assunto?

"De leve" é uma expressão que não tem tradução literal em espanhol. Não com o nosso sentido desgarrado, malandro ou abstrato.

O espanhol é um ser "zasca". Cortante. Pá-pum. Sem essa de meias-tintas. Quando eu cheguei ao país, tive que me acostumar.

Nesse tom zasca, há cada vez mais médicos espanhóis da atenção primária expressando sua insatisfação.

Não é pra menos. Com o início da desescalada, o fim dos hospitais de campanha e a normalização das UTIs, os postos de saúde são a nova bola da vez na filtragem e gestão dos casos de coronavírus no país.

Os profissionais reclamam de falta de pessoal e de recursos e avisam que a saturação está próxima.

Segundo a porta-voz de Madri, além da insuficiência de equipamento de proteção individual para as equipes, cada médico de atenção primária na cidade pode solicitar atualmente apenas um ou dois exames de PCR por dia. Ou seja: nada.

Durante a desescalada, além de detecção precoce dos casos de Covid, os postos de saúde passam a assumir o rastreamento e o acompanhamento de suas redes de contato.

E quem vai fazer isso? O sindicato de enfermaria espanhol explica que, em média, cada enfermeira (isso, aqui o nome é utilizado no feminino, abarcando tod@s) dos centros de saúde tem 1.900 pacientes sob sua responsabilidade, ou 1.649 se são incluídos no cálculo os hospitais.

O ideal, segundo o sindicato, é não passar de 1.100. "Os centros de atenção primária de nosso país levam anos sofrendo cortes em recursos humanos e materiais", avisa.

Pra agravar a situação, começam a emergir das profundezas do "lockdown", claro, os Outros Pacientes Todos.

Um documento assinado por diversas associações médicas espanholas e divulgado no início de maio alerta para este duplo desafio do setor: dar conta dos pacientes com coronavírus e, ao mesmo tempo, tratar os pacientes de outras enfermidades que estiveram confinados "sem um acompanhamento médico estreito por causa do estado de emergência".

Segundo o informe, a Espanha necessita de pelo menos 88 mil enfermeiras a mais no sistema de saúde para dar conta do novo cenário.

Os profissionais de saúde infectados por coronavírus na Espanha superam hoje os 51 mil.

Segundo Fernando Simón, médico epidemiologista e porta-voz da crise do governo central, a meta é chegar a identificar novos casos de Covid-19 em até 48 horas, em lugar dos mais de seis dias atuais.

"É um objetivo muito ambicioso que veremos pouco a pouco se é possível nas zonas que transitem à fase 1", disse nesta semana, em pronunciamento oficial, arqueando suas fartas sobrancelhas grisalhas sobre ozoinhos vítreos, cansados. De leve.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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