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Diário de confinamento: 'Dá medo, medinho, medaço'

Espanha, que mergulhou numa espécie de transe, começa a erguer a vista para o futuro

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Barcelona

Dia #64 – Sábado, 16 de maio. Cena: Ay, pena, penita, penaaaa.

Olhos de gata pintados de kajal, o perfil potente, a personalidade transpirante nos gestos, na mirada que varria a audiência, no simplesmente-estar. Lola Flores era toda uma Elis vestida de "gitana" flamenca, uma controversa e inesquecível heroína do cancioneiro espanhol.

Mulher trabalha em loja em Barcelona usando máscara e luvas, após o governo espanhol começar a afrouxar medidas de isolamento contra o novo coronavírus - Sergi Camara - 15.mai.20/Xinhua

O in memoriam deste sábado, evocado em massa pela imprensa espanhola, foi pra essa espanhola de Cádiz, morta há exatos 25 anos, aos 72 anos, depois de uma longa batalha com um câncer.

A Espanha se prepara para avançar o processo de desescalada do confinamento na próxima segunda-feira (18).

Num processo gradual e assimétrico de quatro etapas, em que entram na balança indicadores regionais de saúde e também fatores socioeconômicos, 70% do país entram a partir de segunda na chamada fase 1 do desconfinamento.

Ou melhor: aos 50% da população já em fase 1 há uma semana se somarão mais 10 milhões de pessoas em toda a Espanha.

Nesses territórios, reabre o pequeno comércio de até 400 m2, sem necessidade de hora marcada; também é liberada a área externa de bares e restaurantes, com ocupação máxima de 50%; e passam a ser permitidas as reuniões de até dez pessoas, com regras mais flexíveis de deslocamento dentro do próprio município.

Apenas 0,09% do país passará à fase 2: algumas pequenas ilhas do arquipélago de Canárias e Formentera, ao lado de Ibiza.

Entre outras coisas, a fase 2 ressuscita parte da vida cultural dos territórios, ao permitir a reabertura de teatros, cinemas e auditórios, além da área interna de bares e restaurantes, sempre com muitas regras e capacidade de lotação reduzida.

E uns poucos outros territórios —basicamente, os protagonistas nacionais da crise, Madri e Barcelona, e parte de Castilla y León— entraremos na chamada fase 0,5, com a liberação de alguns benefícios da fase 1.

Basicamente, essa invenção decimal de última hora flexibiliza a abertura do comércio, nos moldes permitidos pela fase 1, mas não os outros itens. A gente vai ter que esperar pelo menos mais uma semana pra poder encontrar com os amigos e a família, ou pra tomar um vermute num terraço de bar.

Descontente com a decisão do Ministério da Saúde, que não atendeu sua solicitação de avançar plenamente para a fase 1, a governadora de Madri, Isabel Ayuso, tuitou: "Nossos comércios se arruínam, e a cada semana perdemos em torno de 18 mil empregos”.

O chefe da equipe sanitária responsável pela gestão nacional da crise, Fernando Simón, que tem saído quase todo dia pra falar na tevê, explicar os números e acalmar a galera (aka população e alas mais exaltadas do governo), cautelosamente elogiou o desempenho de Madri ao longo dos últimos dois meses, coisaetal, mas pediu “paciência” e “prudência”.

“É preciso transferir essa potência de assistência hospitalar aos sistemas de atenção primária”, disse, os olhos claros cada vez mais fundos e cansados em seu frame de super-sobrancelhas grisalhas que me fazem pensar em duendes e poções.

As manchetes espanholas, que nos últimos dois meses mergulharam numa espécie de transe, torcida ou contagem regressiva diária, alimentada pela premência da luta contra o vírus, começam a erguer a vista para o futuro. E dá medo, medinho, medaço.

Nesta sexta, um comentarista econômico comparou a crise que nos espera ao crash de 1929. Até o dia anterior, o paralelo mais comum era com a depressão espanhola de 2008-2011, quando o desemprego bateu nos quase 26% e milhares de pessoas foram à falência após retumbantemente estourar a bolha imobiliária por aqui.

Quando cheguei, em 2012, conheci gente que havia perdido tudo. E não só: estava endividada pra vida inteira. Como uma mágica, mas do mal, haviam quase que da noite pro dia perdido emprego, apartamento, investimento, negócio, economias.

O anúncio do Programa Europeu de Reconstrução foi adiado pela segunda vez nesta semana, mas na sexta se confirmou a disponibilização, até junho, de um fundo de 100 bilhões de euros (R$ 634 bi) para o apoio ao emprego.

Enquanto isso, diante de uma previsão de desemprego doméstico batendo os quase 20% para 2020, as filas para as cestas básicas e “comidas sociais” aumentam exponencialmente em todo o país. O perfil dos que pedem ajuda inclui agora uma grande massa de classe média sem emprego.

Poucas semanas antes de falecer, a “faraona”, como era conhecida Lola, apresentou-se pela última vez num programa de tevê.

O corpo combalido pela enfermidade não lhe permitia estar de pé mais do que alguns instantes e, ao cessar a música, é possível ver um esgar de dor em sua cara. Cai a máscara, fica a diva. Entrou pra história com uma definição do New York Times, que escreveu, em 1953, quando ela foi lá se apresentar: “Lola Flores, uma artista espanhola, não canta nem baila, mas não percam!”.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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