Dia #66 – Segunda, 18 de maio. Cena: Barcelona amanhece hoje mais ruidosa.
Parece um espetáculo desses tipo teatro-do-absurdo, uma coisa meio Finalmente Encontrando Godot.
Segunda, manhã de sol na minha varanda. Duas (conhecidas, amigas, familiares) se encontram na esquina. De luvas e máscaras, se saúdam a distância, fazendo mímica de abraço e dando saltinhos de alegria. Imagino que não se viam há tempos. Essa é a efusividade máxima permitida pela fase 0,5 de desconfinamento em Barcelona.
A partir de hoje, 70% da população espanhola (33 milhões) se encontram na chamada fase 1 de desconfinamento. É a segunda de quatro etapas, que devem ser concluídas até o início do verão no hemisfério norte, no final de junho.
Entre as principais novidades, os terraços de bares e restaurantes podem reabrir com 50% da lotação máxima, e as pessoas voltam a poder se reunir em grupos de até dez pessoas.
Pensa só se nós todos, saindo de um isolamento domiciliar de mais de dois meses, não estamos doidos por um dedo de prosa com café ou "caña" (cerveja) ao ar livre...
Em todo o país, os negócios vão se adaptando com criatividade. Para minimizar o contato, alguns criaram códigos QR para acesso aos menus.
Outros bares instalaram limite de tempo para ocupação das mesas e display de senha eletrônica para dar conta da fila de clientes —afinal, com pouco espaço disponível, o que já era uma odisseia (encontrar uma mesinha ao sol no país das mesinhas-ao-sol) ficou, em muitos lugares, ainda mais difícil.
Depois de um período de aproximadamente duas semanas funcionando só em modo delivery, a reabertura dos espaços ao ar livre traz um pouco de alívio às perdas econômicas de bares e restaurantes.
O "lockdown" levou até restaurantes com estrelas Michelin por aqui a adotarem as "quentinhas" de luxo em domicílio.
O restaurante Coque, biestrelado de Madri que oferece em seu menu degustação (R$ 1.235 ou R$ 1.983 com harmonização de vinhos) pratos como panna cotta de ouriço com molho de callos a la madrileña, estima uma perda de até 30% da clientela internacional em 2020 e de 10% a 20% dos clientes nacionais (uma porcentagem relativamente baixa, me parece, porque, né, quem sofre mais com tutto somos nóis, os mezzo-pra-baixo, e não os super duper abonados).
Até o premiadíssimo chef catalão Ferran Adrià, que andava um pouco distanciado da cena gastronômica desde que fechou o lendário El Bulli (eleito cinco vezes melhor restaurante do mundo) em 2011, reapareceu em seu perfil no Twitter durante o confinamento comentando em vídeo algumas receitas clássicas, como a sopa vichyssoise, em versão econômica.
Os setores de hotelaria, bares e restaurantes correspondem a 6,2% do PIB espanhol, com 314 mil estabelecimentos registrados. São isoladamente os que mais sofreram nesses dois últimos meses de "lockdown", com quase 20% dos ERTEs (dispositivos emergenciais de demissão temporária) do país até agora.
Em sua recente participação num importante congresso (virtual) de culinária em San Sebastián, no País Basco, Adrià falou sobre o futuro da alta gastronomia e sobre a necessidade de reinvenção do setor e citou o exemplo do premiado restaurante Noma, de Copenhagen, que se transformou em bar de vinhos para sobreviver pós-crise.
Apontou também "qualidade" e "boa gestão" como a dupla fórmula de salvação dos negócios, "seja um bar de sanduíches ou um três estrelas Michelin". Bonitas palavras.
Do lado de casa, a cafeteria italiana de toda-la-vida não tem área ao ar livre e está servindo paninis pra levar. Imagino que a funcionária deve passar horas mirando o infinito da ruazinha residencial, porque sempre que eu passo na frente o lugar está às moscas.
Ela, uma colombiana de olhar entre risonho e cansado (olhos, é só o que vejo), diz: é o que temos. Não sei até quando...
“Músicas para quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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