Dia #62 – Quinta, 14 de maio. Cena: Vixe.
Meu compi de apartamento volta da rua diferente. Eu o contemplo por alguns segundos. "O que você fez?" "Vaya, o confinamento tá te afetando mesmo! O cabelo, o cabelo!"
Ir ao cabeleireiro ou ao barbeiro é novidade aqui, brinde da primeira etapa do desconfinamento, aka fase zero, que ora vivemos.
No início do "lockdown", em meados de março, o governo havia permitido o funcionamento dos salões por considerar cabelo e barba aparados uma questão de higiene básica, mas depois voltou atrás.
Com isso, o look neandertal quarentênico dominou geral durante os últimos dois meses (a não ser para os aventureiros caseiros das tesouras, claro).
Por um momento, eu mesma cheguei a pensar em raspar o cabelo de novo, só pra não ter que domar as melenas caóticas de um corte "bob" em processo avançado de desfiguração.
Nesta quarta (13) eu tinha dito que Barcelona ia pedir pra seguir na fase zero (que é a etapa 1......) por mais uma semana. Nesta quinta, finalmente, o governo da Catalunha divulgou sua proposta: que a gente passe, hmm, à fase 0,5.
Isso significaria um relaxamento parcial de regras. A gente seguiria sem bares e restaurantes e sem poder nos reunir em grupos (privilégio dos que ingressam na fase 1 —que é a segunda etapa...), mas o comércio e outros estabelecimentos como bibliotecas poderiam reabrir sem necessidade de hora marcada.
Além disso, nesse eventual cenário, que ainda deve passar pela aprovação do governo central até o fim de semana, velórios poderiam voltar a ser celebrados com poucas pessoas.
O que a Catalunha tem de cautela, Madri tem de pé na porta. Hoje é o quarto dia em que manifestantes vão às ruas de bairros nobres como Salamanca, Aravaca e Pinar de Chamartín para protestar contra o governo e contra o prolongado estado de emergência.
Esses bairros figuram entre os 11 distritos mais ricos da Espanha, concentram um grande eleitorado direitista e são um reduto importante, entre outros, da Opus Dei e de militares.
Embora nenhum partido reivindique oficialmente a tutoria dos protestos, está mais do que clara a relação dos circunstantes com Vox, partido de ultradireita, e o PP, principal partido da oposição.
A governadora de Madri, afiliada ao PP, já declarou seu apoio público aos protestos. Seus discursos e entrevistas têm adquirido um tom cada vez mais agressivo contra o governo central, que chama de "ditatorial", principalmente diante da reiterada negação deste em dar o sinal verde pra que a região passe à fase 1 (Madri é o principal foco de contágios e mortes do país).
De máscaras, abraçados à bandeira da Espanha, batendo panela e empunhando cartazes que pedem a demissão do premiê Pedro Sánchez, os manifestantes não parecem se importar com as regras de distanciamento social.
Somente 20 foram identificados (máscaras, essas marotas) e denunciados pela polícia. Podem ter que pagar uma multa de 600 euros cada um (R$ 3.807) por furar a quarentena.
O barbeiro que meu companheiro de apartamento frequenta é um salão pequeno, mas já está a toda.
O dono estima que o movimento aumentou "uns 10%". Com um corte a cada 20 minutos, sempre com até duas pessoas por vez, ele segue nonstop todo o dia, e meu compi só conseguiu horário porque "alguém ficou doente".
Como medidas de segurança, o barbeiro comprou máquina pra esterilizar batas, outra pra desinfectar o material, e veste por cima de tudo umas batas descartáveis de plástico. Além disso, contou que amanhã chega a maquininha para medir a temperatura dos clientes que encomendou pela internet.
O único grande real problema de todo esse elaborado processo: aparar a costeleta. Com o uso obrigatório da máscara em interações de menos de 2 metros de distância, é um desafio. Tem que ir com calma, uma de cada vez, “pas a pas”...
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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