Famílias de desaparecidos uruguaios deixam as ruas no 20 de maio pela 1ª vez em 24 anos

Marcha do Silêncio terá transmissão simbólica na televisão e redes sociais pelo coronavírus

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Belo Horizonte

Em 20 de maio de 1996, debaixo de garoa, um grupo de pessoas saiu às 19h de uma pequena praça entre a rua Jackson e a avenida Rivera, em Montevidéu, pegou a avenida 18 de Julho, a principal da capital uruguaia, e seguiu até a praça Liberdade.

Caminhando lado a lado, sem dizer nada, prestavam suas homenagens e devolviam ao Estado o mesmo que recebiam quando pediam pela verdade sobre os desaparecidos durante a ditadura (1973-1985): o silêncio.

Retratos de vítimas da ditadura uruguaia cobrem muro com a inscrição "nem esquecimento, nem perdão" na capital, Montevidéu
Retratos de vítimas da ditadura uruguaia cobrem muro com a inscrição "nem esquecimento, nem perdão" na capital, Montevidéu - Eitan Abramovich/AFP

Rafael Michelini, 61, andava ao lado da mãe, lembrando o pai, um dos fundadores da coalizão de esquerda Frente Ampla. No mesmo dia, 20 anos antes, Zelmar Michelini foi assassinado no dia de seu aniversário pela Operação Condor em Buenos Aires, ao lado de outro político uruguaio, Héctor Gutiérrez Ruiz, e de dois ex-guerrilheiros. Os corpos apareceram logo depois, em um carro.

“Ao fazer a marcha em silêncio, se somaram todas as forças de esquerda, gente dos partidos Blanco e Colorado, que de alguma maneira também foram vítimas, queriam a verdade, e as igrejas se uniram a nós. Foi emocionante”, lembra Rafael.

O encontro de 1996, divulgado no boca a boca, foi a primeira Marcha do Silêncio realizada por familiares de desaparecidos políticos do Uruguai. Nos anos seguintes, a multidão foi crescendo. Em 2019, com uma chuva torrencial, um mar de guarda-chuvas e gente encheu quadras a perder de vista.

Às 19h deste 20 de maio, pela primeira vez em 24 anos, a praça em homenagem aos desaparecidos na América estava sem público, assim como a avenida 18 e a praça Liberdade. Os riscos do novo coronavírus obrigaram a Marcha a migrar para a televisão e para as redes sociais na sua 25ª edição.

Durante o dia, fotos de desaparecidos foram colocadas na praça Liberdade, com transmissão ao vivo nas redes sociais do grupo de mães e familiares. Os retratos também apareceram na avenida Itália e por vários pontos do país. Às 19h, um vídeo foi transmitido em canais de TV e pela internet —cerca de 7.000 pessoas acompanharam no Instagram.

Os nomes dos 197 desaparecidos, que encabeçam as marchas em cartazes carregados pelas famílias, foram lidos intercalados com vozes dizendo “presente”, enquanto passavam retratos feitos pelo projeto Imagens do Silêncio. O encerramento foi com hino nacional uruguaio —e o verso “tiranos temblad” (tiranos, tremei)—, como nas ruas.

“Mesmo que a gente não possa se expressar juntos, vai ser muito mais participativo, em cada lar, em cada bairro”, diz um dos organizadores, Javier Tassino, 74. Preso e torturado pela ditadura, tem vários amigos que continuam desaparecidos.

Descolada de bandeiras de partidos ou grupos, a Marcha do Silêncio virou uma data nacional no Uruguai. Com o tempo, todos os departamentos do país passaram a ter atos no dia 20 de maio. Nos últimos dias, edifícios de Montevidéu ganharam faixas com o texto “presente”, e as margaridas sem pétalas (símbolo dos desaparecidos) apareceram em vários pontos da cidade.

A adesão dos uruguaios às marchas e o pedido por verdade e justiça pelo que ocorreu na ditadura foram crescendo conforme surgiam histórias de voos da morte, sequestros e restos de corpos, mostrando a repressão sistemática como fato inegável.

Gerardo Bleier, 59, recebeu no ano passado a notícia que esperava há 43 anos: os ossos do pai haviam sido localizados e identificados. Bleier seguiu pistas atrás de Eduardo durante quase toda a vida e teve apoio fundamental dos outros familiares no caminho.

Em 1996, ele estava no grupo que ajudou a conceber a marcha, para trazer de volta à pauta pública o tema da memória e dos desaparecidos, anos depois de o país ter aprovado em plebiscito a prescrição de crimes da ditadura para militares e policiais.

“Para todos que vivemos isso, o fato de que tantos anos depois, milhares e milhares de pessoas acompanhem essas demandas é a mais importante das vitórias. Porque é a vitória cultural sobre o medo, o cinismo e a mentira”, diz ele.

Dos 196 nomes de desaparecidos lembrados na Marcha, segundo Tassino, 40 foram encontrados —28 tiveram os corpos localizados, dos outros 12 só foram achadas as impressões digitais.

Um 197º nome foi adicionado agora à lista: Pablo Osorio Yamuni, argentino que desapareceu quando cruzava o Rio da Prata entre Buenos Aires e Colônia do Sacramento, em 1977. A denúncia, feita pelo irmão dele, foi reconhecida depois de investigação.

Ainda que em ritmo lento e com freios, o Uruguai tem tentado avançar com os casos na Justiça. Em fevereiro de 2018, uma procuradoria especializada em crimes de lesa-humanidade foi instaurada para trabalhar com casos do tipo, incluindo os da ditadura.

Para familiares, durante anos, o sentimento foi de impotência, diz Ignacio Errandonea, 65.

O irmão dele, Juan Pablo, foi um dos uruguaios sequestrados em Buenos Aires em 1976. Os dois viviam clandestinos na capital argentina. Ignacio percorreu hospitais em busca do irmão, avisou os pais, mas nunca houve resposta sobre o que aconteceu a ele.

“Não passam a informação, mesmo que se saiba que a têm. Não há serviço de inteligência que sofra de amnésia. Isso não existe”, afirma. “Fica a indagação sobre o que aconteceu com Juan Pablo e onde ele está.”

Por anos, ele acompanhou a mãe às reuniões do grupo de familiares e às marchas, até a morte dela. Agora, segue sozinho.

“Eu não conheci Bleier, mas quando o identificaram foi um irmão meu que reapareceu. São todos meus irmãos”, diz.

Graciela Montes de Oca, 55, viu o pai pela última vez quando tinha 11 anos e recebeu um beijo de despedida. Um grupo que se identificou como integrantes das Forças Conjuntas (Forças Armadas e polícia) entrou na casa da família à noite, uma semana antes do Natal de 1975, batendo em portas e janelas, e o levou. Otermín, 45, era militante do Partido Comunista.

A avó paterna morreu perguntando pelo filho e sem conhecer a verdade.

“Para mim, [as marchas são] algo muito acolhedor, como um abraço para a alma, de não me sentir sozinha na busca”, diz ela.

“Sigo buscando por ele para saber a verdade e tirá-lo dessa escuridão. Toda vez que encontramos um corpo, parece horrível, mas é como arrancá-los de lá e trazê-los para junto de nós.”

As marchas criaram tradição de memória no país. Para o ex-senador Rafael Michelini, 20 de maio é um dia de ritual. Visitar o túmulo do pai no Cemitério Central pela manhã, ir à marcha à noite.

Neste ano, ele acompanhou o ato pela televisão e, pela primeira vez, estava sem o irmão Felipe, referência internacional nos temas de direitos humanos, que morreu em 19 de abril.

"Foi um golpe imenso", conta Rafael. “Primeiro fiquei com raiva dele, por ter me deixado sozinho. Depois, fiquei com raiva de mim, por esse mau sentimento."

Entre dez irmãos, os dois sempre foram muito próximos —assim como brincavam juntos, buscaram juntos justiça durante a vida.



Ainda que não estar nas ruas seja triste, Rafael reconhece que realizar a marcha em um momento de pandemia poderia ser como “agregar desgraça à desgraça”.

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