Imprensa é ingênua ao dar espaço excessivo a propagadores de ódio, aponta filósofa

Em livro, Carolin Emcke explica como cólera se infiltrou na esfera pública nos últimos anos

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São Paulo

É possível identificar características do ódio que passou a fazer parte da vida pública nos últimos anos, seja no discurso de partidos de ultradireita ou em protestos de grupos extremistas contra minorias.

Esse sentimento, que “não traz nenhum ganho civilizatório”, como escreve a filósofa e jornalista alemã Carolin Emcke, tem como alvo grupos —os judeus, os imigrantes, as lésbicas, os intelectuais— em vez de indivíduos e é turbinado pelas redes sociais, corresponsáveis por seu alastramento por pouco fazerem para barrá-lo.

“O Facebook e o Google parecem ignorantes quanto à responsabilidade de controlar não só mentiras e desinformação, mas sobretudo crimes de ódio e de incitação ao ódio", pontua Emcke, por e-mail.

"Não conheço uma única escritora LGBT ou não branca, uma única jornalista ou política que esteja no Twitter ou no Facebook que não tenha sido ameaçada de morte ou estupro. Nenhuma.”

A rede social de Mark Zuckerberg está mais interessada em vender os dados dos usuários em busca de lucro do que proteger grupos de serem alvos de ataques, acrescenta a autora.

A jornalista e filósofa alemã Carolin Emcke
A jornalista e filósofa alemã Carolin Emcke, em Berlim - Andreas Labes - 5.mai.18/Divulgação

Filósofa e jornalista com formação na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, Emcke lança no Brasil “Contra o Ódio”, livro em que mistura ensaio e reportagem para caracterizar a cólera que ganhou espaço na esfera pública na última década.

Esse sentimento aparece no discurso de grupos radicais de direita —como a alt-right americana e os partidos Reunião Nacional, na França, AfD, na Alemanha, e Liga, na Itália— e em atos, por exemplo, contra o acolhimento de refugiados do Oriente Médio na Alemanha, em 2016, tema de um longo capítulo do livro.

Para grupos conservadores, a "verdadeira Alemanha" seria uma sociedade homogênea e culturalmente uniforme, em oposição à ideia vigente de um Estado democrático livre e diverso.

Os grupos que reivindicam tal ideário não justificam os motivos pelos quais uma sociedade uniforme seria melhor do que uma plural, como se a homogeneização fosse um valor em si, escreve a autora.

Ante a ideia da pureza racial que sustenta manifestações contra refugiados, o Estado deve, argumenta Emcke, garantir condições para a existência da diversidade.

"Sinto-me menos vulnerável quando percebo que a sociedade em que vivo permite e sustenta estilos de vidas diferentes, crenças religiosas ou políticas distintas. Nesse sentido, fico tranquila com as formas de vida ou de expressão das quais pessoalmente prefiro manter distância", escreve a autora no livro.

Acostumada a cobrir conflitos —Emcke foi correspondente dos periódicos alemães Der Spiegel e Die Zeit entre 1998 e 2014, período no qual passou por Afeganistão, Kosovo, Iraque, Haiti e Palestina, entre outros—, a jornalista conta que a motivação para redigir o livro está relacionada à sua história de vida.

Nascida em 1967, cresceu em uma geração profundamente influenciada pela reflexão histórica sobre os crimes alemães durante a Segunda Guerra Mundial, o que, diz ela, lhe impôs um dever moral de nunca mais permitir que o racismo, o antissemitismo e a exclusão do diferente se tornem hegemônicos outra vez.

Ao menos por hora, esse risco parece estar distante. “Os partidos de extrema direita (ainda) não são maioria. Ideologias racistas, homofóbicas e transfóbicas ainda são apoiadas apenas por uma minoria da sociedade civil”, afirma.

Mas a filósofa acrescenta que a imprensa tem sido ingênua ao dar espaço excessivo a esses movimentos, tornando-se cúmplice na normalização e na legitimação do ódio, a exemplo de programas de TV que apresentam políticos bizarros como se fossem entretenimento.

Uma das soluções para conter o ódio —como sugere o título do livro— seria uma cobertura jornalística voltada para a defesa dos direitos civis.

“É crucial que os jornalistas entendam que eles devem ser imparciais em relação a diferentes partidos políticos, mas parciais em relação à verdade e aos direitos humanos", ressalta.

Ela cita como exemplo a ser combatido a linguagem e a atuação do presidente Jair Bolsonaro, que ela considera vergonhosas. “Ele nem tenta fingir respeitar os direitos humanos ou os direitos iguais de todos os brasileiros. Ele age como se não fosse o presidente de todos os brasileiros, mas apenas de alguns.”

Outro caminho para mitigar o ódio é a possibilidade de que grupos historicamente excluídos possam vislumbrar uma vida melhor. A ideia aqui é que gays e refugiados, por exemplo, possam verbalizar a felicidade que querem, quebrando discursos simbólicos que os colocam como desviantes e diferentes.

"Como uma intelectual LGBT, sei pela minha própria história o quão difícil pode ser crescer sem um roteiro, uma ideia de como seria minha vida ou de que eu poderia ser feliz", afirma ela.

"Para muitos que têm uma fé, um corpo ou um desejo que está além do que é considerado ‘normal’, é difícil imaginar a felicidade, porque existem poucos modelos na literatura, no cinema ou no teatro. Precisamos expressar nossa raiva e nossa crítica, mas também nossas utopias e desejos."

Contra o Ódio

  • Preço R$ 54,90; 194 pgs
  • Autor Carolin Emcke
  • Editora Âyiné

Raio-x

Carolin Emcke estudou filosofia, política e história em Frankfurt, Londres e na Universidade Harvard (EUA). Foi correspondente dos periódicos alemães Der Spiegel e Die Zeit entre 1998 e 2014, para os quais cobriu guerras como as do Afeganistão e do Iraque, além de conflitos na Palestina. Foi professora convidada da Universidade Yale, onde deu aulas sobre teoria da violência, além de conselheira de uma escola de jornalismo em Hamburgo. Atualmente mora em Berlim.​

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