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Depoimento

Ir à rua em Singapura na pandemia traz tranquilidade e tristeza, conta brasileiro

Todos são obcecados pelo que dizem médicos e cientistas, e governo segue a mesma linha

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Fábio Oliveira
Singapura

Na Ásia, de onde a Covid-19 se espalhou pelo mundo, o auge da pandemia parece ter passado. A Folha reuniu relatos do dia a dia no Vietnã, em Singapura, na China e na Coreia do Sul, que dão pistas de como deve ser a vida pós-coronavírus.

Cheguei a Singapura em 27 de fevereiro. O país tinha tido o seu primeiro caso de coronavírus havia pouco mais de um mês, mas as coisas estavam muito tranquilas, embora o controle fosse bem diferente de tudo o que havia visto.

Todos os lugares, principalmente aqueles com maior movimentação de pessoas —como entradas e saídas de metrô, shoppings, o prédio onde eu trabalhava—, foram equipados com câmeras térmicas.

Para entrar ou sair, um funcionário monitorava se alguém estava com a temperatura corpórea acima dos 37,5 °C. Recusar-se a medir a temperatura é crime pelo Infectious Diseases Act (lei das doenças infecciosas).

Na época, o número de casos era bem baixo, e o governo também já fazia “contact tracing”: existia (e ainda existe) um time que faz uma investigação sobre os lugares e as pessoas com quem os infectados estiveram em contato.

Aproximadamente 15 dias depois que cheguei, o governo começou a emitir notas de recomendação para trabalhar de casa, quando o número de casos estava em aproximadamente 70 por dia.

Não era lei. Era recomendação. E muita gente já começou a aderir. No meu trabalho, por exemplo, um dia depois [da medida] ninguém mais foi ao escritório. E tinha um comitê que aprovava quem poderia ir lá.

Os restaurantes que tinham fila começavam a ficar mais vazios. Eu tenho uma amiga americana que estava esperando para ir ao Shake Shack comer um hambúrguer havia dois meses —o lugar tinha acabado de abrir, e as filas eram enormes.

Eu cheguei a ir lá, comer meu lanche e sair em menos de 30 minutos. Quando eu contei pra ela, ela não acreditava!

Da recomendação, o negócio foi evoluindo muito de acordo com o avanço da doença. Hoje, ninguém, de nenhum país, pode entrar em Singapura. Essa medida foi adotada no final de março, quando o número de novos casos começou a subir: de 70 passou a 150, e depois 250 por dia.

Minha percepção é que eles correram para barrar ao máximo a entrada do vírus, tanto que eles divulgavam o número de casos locais e importados, justamente para medir a eficiência de fechar o país. O número de transmissões por casos importados zerou. Depois, foi apenas a transmissão local que cresceu.

O governo, então, começou a limitar o número de pessoas dentro dos estabelecimentos. A regra era por metro quadrado. Não sei o número ao certo, mas foi a partir dali que a vida fora de casa começou a ser incômoda, pois ir a um restaurante já não era mais confortável. Já tinha bem menos gente na rua.

Acho que a grande diferença de Singapura reside em dois fatos. Primeiro: alto nível da educação. Todo muito é muito obcecado pelo que dizem os médicos e os cientistas, e o governo segue exatamente a mesma linha. É um povo muito aderente às regras.

Segundo: eles viveram [as epidemias de] Sars e Mers, dois vírus que antecederam o corona. E que tiveram o seu papel no aprendizado não só do governo, mas da população também. Isso tudo é herança do sistema que eles desenvolveram com essas epidemias.

Quando foi anunciado o “circuit breaker” [o confinamento local, decretado no início de abril], eles especificaram: estabelecimentos de comida e bebida podem ficar abertos. Estabelecimentos com registros de bar, não. Cabeleireiros podem ficar abertos, mas só podem prestar serviços de cortes básicos.

Aglomerações são proibidas, e sair de casa por qualquer motivo que não seja tratar da saúde ou comprar comida está proibido. As multas são altíssimas, de US$ 300 (R$ 1.760) a US$ 10 mil (R$ 58 mil). Você não vê policiamento, não tem muita fiscalização, mas nitidamente não tem ninguém descumprindo.

Não existem documentos que você carrega para provar [o motivo para sair de casa]. Mas, se te pararem na rua, você vai ter que explicar o porquê de estar ali. E eles vão te perguntar. "Você saiu pra comprar comida? Onde você mora?’’ Se você morar a 5 quilômetros dali, eles vão suspeitar.

No domingo (10), eu entrei no metrô para ir ao mercado. Havia quatro pessoas no trem. Chega a impressionar. Me dá um alívio enorme ao entrar no metrô e ver que está vazio.

E ter adesivo onde as pessoas podem sentar ou ficar em pé. É um sinal muito claro de que as pessoas estão aderindo ao distanciamento social e ficando em casa.

Vale lembrar que em Singapura qualquer um com sintoma é testado. E qualquer um que teve contato com alguém com diagnóstico de Covid-19, também.

Para fazer o teste, você tem várias opções: há pontos de testagem em metrô, policlínicas, clínicas particulares, hospitais e pontos provisórios onde não tem nada disso por perto. É muito abundante! O teste é feito, a pessoa é isolada até receber o resultado, que leva em média três horas.

O uso de máscara é obrigatório: saiu de casa, você deve estar de máscara. Três dias antes da obrigatoriedade ser imposta, o governo distribuiu um pacote de máscaras para cada pessoa: você passava nos centros de coleta e pegava.

O check-in no supermercado também é obrigatório. Quando você chega, tem dois funcionários —um vai medir sua temperatura e o outro vai ler o código de barras da sua identidade. Ao fazer isso, ele registra o horário da sua chegada e, na saída, a mesma coisa.

Vamos supor que alguém que esteve ali tenha dado entrada no hospital. Com a mesma identidade, eles vão saber em quais mercados a pessoa esteve e também quem esteve no mesmo ambiente que ela.

Além disso, o governo agora está soltando robôs nos parques, que procuram pessoas se aglomerando e as advertem sobre o distanciamento social. É tipo um cachorro robô. Bizarro!

Esse “circuit breaker” deve durar até 1º de junho, mas o governo já começou a dar sinais de relaxamento, ainda que suaves. Isso está relacionado à abertura gradativa de restaurantes, centros de terapia —como acupuntura, medicina tradicional oriental—, estabelecimentos de higiene pessoal e petshops.

O humor das pessoas mudou desde que cheguei. É bem perceptível, especialmente no supermercado, que as pessoas nitidamente tentam manter a distância umas das outras.

Mas o povo de Singapura é muito resiliente, e mesmo assim eles ainda têm muito respeito, conversam contigo. A atendente do caixa conversa, os funcionários que fazem seu check-in estão sempre de bom humor.

Existe uma preocupação com a situação, mas de uma maneira geral, eles se adaptaram muito rapidamente.

Os expatriados já demonstram mais impaciência. Aqui tem muito europeu. E é nítido que eles se irritam mais nas filas, que eles ficam mais sérios, sentem-se controlados ao ter que mostrar a identidade na entrada do mercado.

Eu me sinto seguro, pois sei que, como eu, todos saem o mínimo possível. Eu saio uma vez por semana para comprar coisas básicas de supermercado. E só. A rua está sempre vazia, e até mesmo o supermercado é vazio.

Há duas perspectivas para quem mora em Singapura. A primeira é a da vida dentro de casa. E essa é sempre difícil. Primeiro porque Singapura é muito verticalizada, a moradia é cara, e 90% da população vive em prédios. Os apartamentos são pequenos.

No meu caso, a dificuldade é a solidão. Por ser novo por aqui e por não ter contato humano em 99% do tempo.

A perspectiva da vida fora de casa é diferente. Ao sair na rua existe um sentimento ambíguo. Você tem a sensação de tranquilidade, mas tem um sentimento de tristeza, pois é uma cidade muito ativa. Sempre cheia, sempre com muitos turistas, sempre bastante agitada.

E ver isso aqui vazio para eles deve ser tipo você ir à avenida Paulista no domingo e estar tudo fechado e ninguém na rua. Você sente que a cidade está mais triste.​

Fábio Oliveira, 29, é engenheiro.  Depoimento a João Perassolo.  

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