Descrição de chapéu Coronavírus

Liberação de presos devido à Covid-19 ameaça lua de mel de Fernández e Argentina

Soltura de abusador sexual e torturador da ditadura irritou população e inflamou oposição

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Buenos Aires

Começou na prisão de Devoto, encravada no meio da cidade de Buenos Aires, no último dia 24.

Informados de que um dos carcereiros havia apresentado sintomas de coronavírus, os detidos armaram o primeiro motim. Colocaram fogo em colchões e abriram, a golpes, o teto da penitenciária.

Lá do alto, mascarados e com paus e pedras, pediam para sair da cadeia. Cartazes diziam "não queremos morrer aqui dentro".

A rebelião durou dias e foi registrada pelos próprios presos, que, com celulares, gravaram e publicaram cenas do motim nas redes sociais.

Detentos do presídio de Villa Devoto durante motim por medidas de prevenção à Covid-19
Detentos do presídio de Villa Devoto durante motim por medidas de prevenção à Covid-19 - Ronaldo Schemidt - 24.abr.20/AFP

Enquanto isso, em outras prisões da província de Buenos Aires, outros tumultos começaram a ocorrer.

Numa penitenciária na cidade de Florencio Varela, detentos fizeram greve de fome para conseguir água sanitária, máscaras e atendimento médico.

Com a quarentena, foram proibidas as visitas aos presidiários. Muitos alegam não ter o que comer, porque, argumentam, dependem do que os familiares costumavam levar —já que as porções oferecidas nos centro de dentenção não dão conta de atender a todos.

A situação piorou quando dois presos apresentaram sintomas da doença e foram isolados. Os demais começaram a queimar colchões e a exigir libertação, com medo de serem infectados.

A situação se repetiu também em outras províncias, como Córdoba, Salta e San Luis.

O presidente argentino, Alberto Fernández, disse concordar com as recomendações da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para transferir detentos que cometeram delitos leves ou não violentos para prisão domiciliar e transmitiu a sugestão à Justiça.

Muito mais difícil, porém, foi colocá-la em prática. Apenas na província de Buenos Aires há 52 mil presos em penitenciárias deveriam abrigar, no máximo, 24 mil.

Frente à situação, juízes tomaram decisões diferentes, mas a maioria se viu obrigada a liberar também os que haviam cometido crimes graves, mesmo que sem tornozeleiras eletrônicas, pois as que existem no país já estão sendo usadas.

Assim, foram libertados mais de 1.700 detentos, e muitos deles se encontram na categoria de criminosos graves, como o empresário Carlos Dalmasso, 58, condenado em 2013 a 12 anos de cadeia por ter estuprado seus dois filhos adotivos.

Ou Eugenio Llul, 67, também condenado à mesma pena por abusar sexualmente de uma neta.

Ainda há os casos de Mauro Aguirre, 74, ex-professor da Universidade Nacional de Cuyo, acusado de abusar sexualmente de sete alunas adolescentes, e do médico Carlos Capdevila, 74, conhecido torturador condenado por crimes cometidos durante a ditadura (1976-1983).

Foi então que as críticas começaram a surgir, ameaçando a lua de mel entre Fernández e a população argentina.

Dia sim, dia não, panelaços vêm de varandas e janelas das grandes cidades. As convocatórias para os atos deixam claro que a libertação de presos é o motivo.

Para a advogada penalista Florencia Arietto, "cabe à Justiça fazer uma triagem". "Há presos que não podem sair, aqueles que cometeram assassinatos, estupros, crimes de narcotráfico. Tampouco devem ser abandonados à morte. Precisam ser alimentados, cuidados pelo Estado, mas dentro das cadeias, cumprindo suas penas."

Juízes que determinaram a soltura de presos por crimes graves afirmam ter se baseado na idade dos detentos, uma vez que idosos fazem parte do grupo de risco da Covid-19.

Arietto contesta a justificativa. "Ser de um grupo de risco não pode ser um passaporte para a liberdade. Já o fato de o delito cometido ser leve, de o detento ter bom comportamento, sim. Os demais, que sejam cuidados, que se evite que se contaminem, porém, dentro das prisões."

O ex-ministro do Supremo Eugenio Zaffaroni defende a soltura dos presos como forma de "evitar uma hecatombe na área da saúde".

Segundo ele, parte da população carcerária ainda não foi condenada ou recebeu penas curtas —e poderia sair da cadeia no contexo da pandemia. "Estamos numa situação de emergência, à beira de uma catástrofe, e o Estado é responsável pela integridade física e pela saúde dos presos."

Nesta terça (5), a Suprema Corte da Província de Buenos Aires suspendeu as libertações —mas a medida é restrita à província e não inclui a capital nem o resto do país.

Com o aumento dos protestos, Fernández vem fazendo o possível para afastar seu nome da polêmica. Entre os gritos de guerra nos panelaços é possível escutar, aqui e ali, "fora, Fernández".

O líder argentino, por sua vez, declarou que há "uma campanha midiática para acusar o governo de favorecer os condenados". "Na Argentina, a solução do problema está nas mãos dos tribunais. São os juízes quem devem determinar as libertações."

Ainda assim, mostrou-se pró-libertação, já que, para ele, "o risco de contágio aumenta nos lugares de muita aglomeração, portanto as prisões viraram um ambiente propício para a expansão da doença".

Para evitar que mais libertações causem mais revoltas, num momento em que o presidente goza de boa popularidade (70%) devido à relativa contenção da pandemia, Fernández pediu à ministra da Justiça, Marcela Losardo, que assuma pessoalmente os pedidos de libertação e faça uma proposta para aliviar a superlotação nos presídios, problema que ocorre há décadas no país.

Na segunda-feira (4), Losardo afirmou que "ninguém está de acordo em tirar da cadeia estupradores ou assassinos em série". "Vamos resolver o problema sem tirar o foco da saúde pública."

A oposição vem pressionando. O chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, do partido do ex-presidente Mauricio Macri, diz que "não é correto pedir que as pessoas comuns se tranquem em casa e coloquemos nas ruas os delinquentes".

Também nesta terça, a Associação de Magistrados e Funcionários da Justiça Nacional divulgou um comunicado em resposta às reclamações da população, dizendo não ter culpa pela superlotação dos presídios. "O ideal seria não ter de tomar essa medida por temor de contágio, e sim que o Executivo garantisse as prisões com segurança para tratar e isolar presos doentes", diz o texto.​

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