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Sem poder correr maratona de Boston, escritor cria própria prova em meio à pandemia

Rota solitária em Michigan foi acompanhada por cem pessoas, entre amigos e familiares

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Washington

John Bacon estava mergulhado em uma rotina de trabalho alucinante desde 2014.

Escreveu quatro livros em cinco anos e se tornou um dos autores mais vendidos de literatura esportiva nos EUA, mas dizia que ele mesmo não tinha tempo de praticar exercícios físicos.

Costumava trocar o jantar por uma caixa de biscoitos, devorados em frente ao computador, quando o peso do mau hábito ficou evidente. Já não conseguia acompanhar a energia do filho Teddy, de três anos.

John Bacon chega à linha de chega de sua própria maratona em Ann Arbor, no estado de Michigan
John Bacon chega à linha de chega de sua própria maratona em Ann Arbor, no estado de Michigan - Chris Poterala/Divulgação

Era julho do ano passado, e Bacon decidiu subir na balança no dia de seu 55° aniversário.

Apesar de 1,80 metro de altura, os quase 100 quilos que piscavam no visor assustaram o escritor americano.

"Vi que precisava mudar de vida e ter um objetivo grande, capaz de me apavorar para isso", contou à Folha.

Bacon foi superlativo. Decidiu se inscrever para correr os 42 quilômetros da maratona de Boston, a mais famosa e tradicional corrida de longa distância do mundo.

O tempo do escritor não era suficiente para que ele conseguisse uma classificação para disputar a prova, mas o escritor diz que uma fatia de cerca de 15% dos corredores têm direito de participar se arrecadarem dinheiro para caridade.

Foi o que ele fez, além de prometer escrever um livro sobre a experiência. "Foi o suficiente para a Boston Athletic Association me dar um número."

O avanço da pandemia, porém, mudou seus planos após nove meses de treinamento intenso.

Realizada sempre na terceira segunda-feira de abril, Dia do Patriota nos EUA, a maratona precisou ser adiada para setembro e fez com que o americano criasse um roteiro para sua própria corrida em Ann Arbor, cidade onde mora no estado de Michigan.

"Fiquei mais chateado do que esperava e pensei no que poderia fazer. Desistir e voltar a comer porcaria e beber cerveja? Aí olhei para o meu filho. Eu havia mudado por ele, então decidi correr em casa."

Bacon traçou uma rota para 18 de abril, dois dias antes da data prevista para a maratona de Boston.

O ponto de partida foi a casa de seus pais, ambos com quase 90 anos —pertencentes ao grupo de risco para o novo coronavírus— e a quem Bacon não visita desde o início da pandemia.

Depois, entravam no circuito as escolas em que ele estudou durante a infância e adolescência, seus bares e parques favoritos, e o estádio de Michigan, onde costumava assistir a jogos de beisebol com amigos.

O roteiro era planejado, mas o que Bacon não imaginava era que mais de cem pessoas iriam acompanhá-lo —respeitando as regras de distanciamento social— durante todo o percurso.

"Não esperava mais do que três ou quatro pessoas, mas o que aconteceu foi incrível."

O momento mais marcante, conta, aconteceu em frente à escola em que cursou o ensino médio.

Seu ex-treinador de beisebol, Bob Cope, estava ao lado da mulher, segurando a camiseta do time local. Cope tem Alzheimer e não encontrava Bacon havia anos.

"Não tinha ideia de que veria Cope naquele dia. Parei, fizemos contato visual, não sei se ele ainda consegue falar, mas ele se emocionou e eu também. Aquilo foi maravilhoso, e me motivou a seguir correndo."

Bacon levou cinco horas e meia para terminar sua maratona —vencedor em Boston no ano passado, o queniano Lawrence Cherono cruzou a linha de chegada depois de 2h7min57seg. "O filme da minha vida passou pela minha cabeça, mas era um filme bem lento", diverte-se Bacon.

A velocidade não era o forte nem o objetivo do escritor. Ele só queria cumprir sua meta.

Durante a corrida, ouvia os gritos irônicos do treinador Ron Warhurst, que o acompanhava de dentro de um carro: "Se você for mais devagar, estará caminhando".

Warhurst tem 76 anos. Lutou pelos EUA na Guerra do Vietnã e sobreviveu a dois tiros em combate.

No início dos treinos, há nove meses, disparava na frente e tinha que esperar Bacon recuperar o fôlego depois de pouco mais de 3 km de corrida.

De lá para cá, o escritor melhorou o ritmo, correu por quase 800 km e perdeu 15 kg.

Aos poucos, diz Bacon, o processo vai ficando mais fácil. "Ou melhor, menos terrível."

Com dores no corpo ao fazer sua maratona, lembra que os últimos 10 km foram tão difíceis quanto os dois primeiros que correu no ano passado.

"Se eu estivesse sozinho, seria muito fácil ter parado, mas os amigos vão te levando até o fim."

Bacon ainda tem planos de correr a maratona de Boston, marcada para 14 de setembro, se a pandemia permitir. A Covid-19 já infectou mais de 1,3 milhão de pessoas nos EUA e matou quase 80 mil.

"São tempos difíceis para todos, mas é preciso focar as coisas que você consegue fazer, e você consegue correr, ver seus amigos à distância, isso faz diferença. Esperei cinco anos para recomeçar minha vida. E minha dica é: não espere tanto. Coloque o tênis e vá."

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