Descrição de chapéu Financial Times Coronavírus

Etiópia controla Covid-19 mesmo sem quarentena e com poucos ventiladores

Combate à pandemia no país segue abordagem focada na prevenção

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David Pilling
Financial Times

Quando você pega um telefone na Etiópia para fazer uma ligação, em lugar do som de discar, ouve um jingle explicando os benefícios de lavar as mãos, praticar distanciamento social e usar máscara.

Igrejas e mesquitas estão fechadas; as cerimônias religiosas acontecem eletronicamente. Segundo autoridades, agentes de saúde comunitários já examinaram nada menos que 40 milhões de pessoas em 11 milhões de residências, verificando seu histórico de deslocamentos e fazendo medições de temperatura corporal de rotina.

Agente de saúde mede temperatura de garota em Adis Abeba, na Etiópia - Michael Tewelde - 20.abr.2020/AFP

As autoridades prepararam locais para 50 mil pessoas fazerem quarentena e disponibilizaram 15 mil leitos em centros de isolamento. A maioria dessas vagas não foi usada até agora. Seja por que razão for, a Etiópia evitou o pior da pandemia de coronavírus, pelo menos até agora.

Segundo dados oficiais, esse país de 110 milhões de habitantes na África oriental, o segundo mais populoso do continente, registrou até agora apenas 731 casos de Covid-19 e seis mortes.

É verdade que o número de casos subiu muito nos últimos dias, possivelmente em consequência da intensificação dos testes, ou pode ser sinal de que a transmissão comunitária está se acelerando.

É verdade também que nem todos vão acreditar nas cifras anunciadas por um país que tem um histórico de controle autoritário, incluindo o controle dos dados.

Mas há poucas evidências claras de surtos amplos da doença não refletidos nos dados oficiais, e, mesmo que o número de mortos fosse muitas vezes maior que a cifra anunciada pelo governo, ainda seria baixo.

O Reino Unido, país com pouco mais da metade da população da Etiópia, tem cerca de 6.000 vezes mais mortes.

O governo tecnocrata da Etiópia decidiu que não teria como arcar com o mesmo tipo de reação ao vírus apresentada por países ricos.

Apesar de sua economia ter crescido rapidamente nas últimas décadas, a Etiópia ainda é um país pobre, com renda per capita –ajustada para os preços vigentes— de apenas US$ 2.500 (R$ 13,3 mil). Quando a pandemia começou, o país tinha 22 ventiladores para pacientes com Covid.

Arkebe Oqubay, ministro sênior e assessor especial do primeiro-ministro, diz que o governo concluiu desde o início que não poderia arcar com os custos de um "lockdown", que seria difícil de implementar e teria grandes ônus sociais.

E o país tampouco barrou imediatamente os voos vindos da China, posição que lhe valeu muitas críticas.

Em vez disso, impôs controles da temperatura no aeroporto internacional. Arkebe disse que o primeiro caso veio do Japão, enquanto casos subsequentes foram importados principalmente da Europa.

Em vez de um "lockdown" rígido, a Etiópia optou por uma resposta baseada na divulgação de mensagens públicas. “Esta não é uma doença que se combate com ventiladores ou UTIs”, disse Arkebe. “Noventa por cento da solução está no distanciamento social e na lavagem de mãos. A única maneira que temos de jogar e ganhar é enfocando a prevenção.”

O governo se apoiou fortemente em um sistema de saúde comunitário erguido por Meles Zenawi, que foi primeiro-ministro até sua morte, em 2012, e seu ministro de saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, hoje diretor-geral da Organização Mundial da Saúde.

Em lugar de construir hospitais de luxo, a Etiópia injetou o dinheiro que pôde na assistência de saúde básica: campanhas de vacinação e atendimento infantil e maternal.

Não devemos exagerar nos elogios. A expectativa de vida na Etiópia ainda é modesta, 66 anos, embora isso seja 15 anos mais do que era duas décadas atrás.

E as ações adotadas pelo governo não podem ser vistas como únicas responsáveis pelo baixo número de mortos pelo coronavírus. “O governo respondeu com eficiência, sob alguns aspectos”, reconhece William Davison, analista sênior do think tank Crisis Group.

“Mas isso não parece ser o bastante para explicar os baixos índices de infecção. Há uma série de outros fatores em jogo.”

Entre esses fatores se destaca o fato de que o coronavírus assumiu uma forma mais atenuada na África, pelo menos até agora. Há apenas cerca de 3.600 mortes registradas em um continente de 1,2 bilhão de habitantes –um total baixíssimo, mesmo levando-se em conta a possibilidade de subnotificação.

Isso se deve em parte a uma resposta eficaz e imediata de muitos governos já familiarizados com o impacto de doenças infecto-contagiosas. Também pode estar ligado ao relativo isolamento da África.

Outros fatores provavelmente também beneficiaram o continente, mais plausivelmente sua população jovem –a média de idade da população africana é apenas 19,4 anos.

As autoridades de saúde pública estão justificadamente cautelosas, temendo um aumento nos casos se os governos se descuidarem. Mas mesmo a OMS admite que a pandemia parece estar seguindo um caminho diferente na África. Nada disso significa que a Etiópia possa baixar a guarda.

Ainda é possível que ocorra um aumento grande de casos. E, mesmo que o impacto sobre a saúde da população acabe sendo menor do que se temia, as consequências econômicas provavelmente serão amplas.

Uma recessão econômica pode acabar gerando uma crise política. As eleições etíopes previstas para agosto foram adiadas em função da pandemia. Acaba de ser imposto um estado de emergência.

Há uma reação forte contra o governo central vinda do mosaico de Estados etnicamente delimitados.

Mesmo assim, em um momento em que o mundo esforça para definir quais respostas nacionais vêm funcionando e quais estão fracassando, é preciso fazer avaliações provisórias.

Por enquanto, pelo menos, a Etiópia parece estar ganhando.

Tradução de Clara Allain 

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