Associação de símbolos a extremismo gera temor em ucranianos no Brasil

Comunidade preocupa-se com possíveis atos de agressão em razão de uso de bandeira histórica

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São Paulo

O mesmo símbolo ucraniano que foi associado ao neonazismo numa recente manifestação na avenida Paulista está tatuado no braço esquerdo do professor de educação física Luiz Rafael Matias Lepchak, 31.

Mas Lepchak, integrante de um grupo folclórico da comunidade ucraniana de Curitiba (PR) há 20 anos, está longe de ser um extremista.

Alex Silva (de costas), com a bandeira do Pravy Sektor, movimento de extrema direita ucraniano, em ato na Paulista neste domingo (31) – Fotos Reprodução Instagram
O brasileiro Alex Silva, de costas, com a bandeira histórica ucraniana que foi equivocadamente associada ao neonazismo, durante manifestação na Paulista - Instagram

O símbolo é o Tryzub, que tem formato de um tridente. Representa a Santíssima Trindade desde o século 10, quando o cristianismo foi introduzido na Ucrânia pelo príncipe Vladimir (958-1015). É amplamente usado no país do leste europeu.

“Todo o meu braço possui tatuagens com significado da cultura ucraniana. Logo abaixo do Tryzub, tenho tatuado um pedaço do refrão do hino”, diz ele.

Desde que começaram a surgir notícias ligando símbolos ucranianos ao radicalismo de direita, o professor de educação física passou a se preocupar com sua própria segurança.

“Regimes nazistas, neonazistas e fascistas, são totalitários e supremacistas, algo que não cabe sob a bandeira ucraniana. Tenho medo de mostrar meu braço e ser recriminado ao vivo ou em redes sociais, e até agredido”, afirma.

A associação com o extremismo começou a ser feita depois que uma bandeira com o símbolo apareceu em atos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, em São Paulo.

Ela pertence a Alex Silva, 46, brasileiro que vive em Kiev, capital da Ucrânia, onde é instrutor em uma academia para treinamento de paramilitares.

A bandeira tem uma faixa preta e outra vermelha, com o Tryzub no meio, e era usada pelo Exército Insurgente Ucraniano, que combateu os nazistas e a União Soviética na Segunda Guerra. É considerada uma bandeira histórica, aceita livremente no país, e sem ligação com neonazismo.

A confusão ocorreu porque uma versão dela, em que uma espada é sobreposta ao tridente, é usada pelo Pravyi Sektor (Setor Direito), organização de ultradireita criada em 2013 na Ucrânia.

Isso gerou críticas em razão do suposto caráter extremista do símbolo, uma delas feita pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT) pelo Twitter.

Ele disse que o Brasil estava importando terroristas da Ucrânia, o que motivou pedido de retratação por diversas entidades da comunidade no Brasil.

“Eu tive o cuidado de dizer que estamos importando terroristas da Ucrânia, não ucranianos, em referência a esse homem [Silva] e à Sara Winter [ativista pró-Bolsonaro]. Foi um tuíte irônico, sem agressão a nenhum ucraniano”, disse Haddad.

Embora as cores nacionais da Ucrânia sejam o azul e o amarelo, o preto e o vermelho também têm significado especial no país.

“Preto e vermelho estão presentes na história da comunidade ucraniana desde sempre. Desde o artesanato, com camisas bordadas, até na Páscoa, com ovos pintados nessas cores”, diz Andreiv Choma, 36, pesquisador da cultura ucraniana.

O preto significa a terra fértil, mas também o luto pelos antepassados, enquanto o vermelho é o sangue dos heróis.

No Brasil, segundo Choma, os símbolos são usados frequentemente pela comunidade de descendentes ucranianos, que soma 600 mil pessoas, 80% no Paraná.

“Estão em todo lugar. Em adesivos de carros, tatuados no corpo, expostos nas salas de casas, na porta de centros culturais”, diz Choma. Daí a preocupação de que algum mal-entendido gere alguma situação de violência.

“A gente não gosta de ver nossos símbolos nacionais ligados a questões políticas. Seria como associar o Cruzeiro do Sul a coisas absurdas. Ou aqui no Paraná, fazer isso com a araucária”, afirma Choma.

Para Vitorio Sorotiuk, 75, presidente da Representação Central Ucraniano Brasileira, há um desconhecimento muito grande no Brasil da história da Ucrânia.

“O que está acontecendo parece aquela história do estrangeiro que diz que a capital do Brasil é Buenos Aires”, diz ele, cuja entidade é a principal representante da comunidade ucraniana no país.

Segundo Sorotiuk, o maior receio é o efeito que a polêmica pode ter sobre os ucraniano-brasileiros.

“Isso prejudica muito. A nossa preocupação é que não contamine a comunidade, que é unida, sólida em aspetos culturais”, diz.

Sorotiuk diz que a comunidade é diversa. “Temos pessoas em todos os partidos políticos. Gente contra Bolsonaro, a favor de Bolsonaro”, afirma.

Cerca de 70% dos descendentes de ucranianos têm como antepassados migrantes que chegaram ao Brasil na década de 1890, em busca de oportunidades econômicas. Quase todos os outros vieram durante o domínio soviético, que só acabou em 1991.

Esse histórico faz com que parte da comunidade tenha um forte sentimento anticomunista, expresso sem rodeios por algumas de suas lideranças.

Um exemplo é a própria mulher do embaixador ucraniano, Rostyslav Tronenko, a brasileira Fabiana, que é forte apoiadora de Bolsonaro nas redes sociais.

“Sou totalmente contra a esquerda, contra os regimes de comunismo e socialismo, porque eles são totalmente contra nós, nossa família, nossas tradições e nossa fé”, escreveu a embaixatriz no ano passado, numa rede social.

Tronenko diz que a comunidade é diversa e que a posição pessoal de sua mulher não significa alinhamento da embaixada com grupos políticos no Brasil.

Segundo o embaixador, “qualquer relação ou comparação dos nossos símbolos ao nazismo é absurda, criminosa e incoerente”.

“A deturpação do verdadeiro significado é algo de extrema gravidade e que, de jeito nenhum, deve ser tolerado e sair impune”, disse.

Tronenko afirma que já expressou ao governo brasileiro preocupação com o uso indevido dos símbolos de seu país.

“Tememos que devido a uma acusação tão grave e sem cabimento, o símbolo que atualmente nos enche de tanto orgulho acabe sendo visto como algo nazista, que tem por significado coisas tão desumanas e abomináveis que esse tipo de pensamento apresenta”, declarou.

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