Brasil pode ser exemplo de como defender democracia da desinformação, diz diretor do Avaaz

Fundador da organização assessora projetos de lei contra fake news apresentados no país

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São Paulo

O Brasil tem a oportunidade de mostrar ao mundo como adotar uma legislação equilibrada contra as fake news e se tornar um exemplo de como defender a democracia da ameaça da desinformação, afirma Ricken Patel, 43, fundador e diretor-executivo da Avaaz, a maior comunidade de ativistas online do mundo, com 60 milhões de membros —dos quais, 17 milhões só no Brasil.

Ele acompanha de perto as tentativas brasileiras de criar uma legislação contra desinformação.

Com base em estudos sobre o assunto em diversos países, a organização atuou como consultora nos projetos de lei apresentados pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e pela dupla de deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES).

Ricken Patel, diretor-executivo da Avaaz, durante evento em 2018
Ricken Patel, diretor-executivo da Avaaz, durante evento em 2018 - Friends of Europe

“Há uma grande probabilidade de que as eleições brasileiras em 2022 sejam inundadas por campanhas de desinformação. Isso poderá ser irreversível para a democracia brasileira”, diz.

"Se o Brasil aprovar essa legislação, vai catalisar um movimento global e salvar não apenas a democracia brasileira, mas pode ajudar a salvar a democracia no mundo”, completa o canadense-britânico.

Algum país já conseguiu implementar uma legislação contra desinformação que seja eficaz e, ao mesmo tempo, não viole a liberdade de expressão? A resposta curta é não. Ainda não foi aprovada uma legislação ideal no mundo. A legislação na Alemanha é ótima, mas cobre apenas conteúdo ilegal –e sabemos que parte da desinformação é ilegal, mas a maioria não é. A lei na França é uma tentativa admirável de lidar com a desinformação, mas é insuficiente.

As principais obrigações estabelecidas na lei restringem-se aos períodos eleitorais, e ela determina que conteúdo com objetivo de mudar votos seja considerado desinformação. Como a lei permite remoção de conteúdo, exige que um juiz intervenha antes. O sistema proposto no Brasil, em que o conteúdo é corrigido, e não apagado, pode se apoiar em checadores de fatos, e não juízes. Isso torna mais factível ter uma resposta na velocidade e na escala adequadas.

Muitas leis na Ásia são regressivas e antidemocráticas. A legislação em Singapura transforma o governo em um árbitro da verdade. A lei da Malásia era tão ruim –criminalizava o compartilhamento de fake news, entre outras coisas– que foi revogada. Pessoas foram presas na Indonésia e no Camboja simplesmente por compartilharem informação que o governo alegava ser desinformação. Centenas de pessoas foram multadas por causa do decreto presidencial sobre fake news no Vietnã.

O Reino Unido e a Irlanda estão estudando legislação sobre danos online, mas não está claro se essas leis vão abordar desinformação e, caso abordem, que instrumentos vão usar. Legislação antidesinformação que seja eficiente e democrática não pode ser muito restrita, como é o caso das leis na Alemanha e na França. Tampouco pode criminalizar linguagem, violando o direito à liberdade de expressão, como as iniciativas na Ásia. O Brasil tem a oportunidade de mostrar ao mundo como adotar uma legislação equilibrada e se tornar um exemplo de como defender a democracia da ameaça sa desinformação.

Em que medida a desinformação ameaça a democracia? Estamos vendo uma bola de demolição se movendo ao redor do mundo, impulsionada por movimentos e líderes que são movidos a desinformação, que assumem o poder afogando os eleitores em mentiras e depois usam a desinformação para manter o poder. É a tirania 2.0. Os mestres dessa tirania são regimes autocráticos como China e Rússia, mas ela é cada vez mais exportada globalmente.

A janela de oportunidade para agirmos a respeito desse problema está se fechando, porque, quando um movimento ou um líder movido a desinformação assume o poder, mudam os incentivos para as big techs, as plataformas de mídias sociais. A partir desse momento, elas sofrem pressão para não agirem, não adotarem nenhuma medida que mexa com a desinformação. E aí que realmente temos um cenário distópico, um governo que recorre à desinformação, garantindo que as plataformas mantenham a desinformação circulando.

Todas as evidências indicam que os eleitores brasileiros votaram na última eleição presidencial, em 2018, majoritariamente acreditando em informações tóxicas tanto sobre as pessoas em quem estavam votando quanto sobre as pessoas que estavam votando contra. E elas receberam essa desinformação pelas mídias sociais. Há uma grande probabilidade de que as eleições brasileiras em 2022 sejam inundadas por campanhas de desinformação. Isso poderá ser irreversível para a democracia brasileira. É por isso que considero crucial para o mundo e para o Brasil aprovar agora legislação inteligente, que proteja a democracia e a liberdade de expressão. Se o Brasil aprovar essa legislação, vai catalisar um movimento global nessa direção, e vai salvar não apenas a democracia brasileira, mas pode ajudar a salvar a democracia no mundo.

Líderes populistas de direita encampam a bandeira da defesa da liberdade de expressão e alertam para o perigo de regulamentação acabar se transformando em censura. Ao redor do mundo, tentativas de criar leis emperraram por causa dessa falsa contraposição entre proteger a liberdade de expressão e proteger a democracia. A verdade é que não existe democracia sem liberdade de expressão, e não existe liberdade de expressão sem democracia. Precisamos aprovar uma legislação que proteja ambas. É por isso que as versões originais dos projetos da Câmara e do Senado [do Brasil] eram excelentes no sentido de promoverem soluções que teriam um impacto sobre desinformação e, ao mesmo tempo, não censurariam absolutamente nada, não removeriam nenhum conteúdo.

Que medidas a Avaaz recomenda para combater desinformação? Os projetos de lei originais na Câmara e no Senado tinham três mecanismos muito inteligentes para proteger a democracia, sem sacrificar a liberdade de expressão: banir contas falsas e rotular robôs; distribuir checagens de fatos feitas por checadores independentes para todas as pessoas expostas a desinformação; e exigir que as plataformas não promovam informações falsas ou distorcidas em seu algoritmo —o que foi avaliado como falso ou enganoso por checadores não pode ser promovido ou ganhar evidência por meio do algoritmo. Nenhuma dessas medidas viola liberdade de expressão ou remove o conteúdo, e elas são muito eficientes.

Os checadores no Brasil estavam um pouco receosos em relação à legislação, não sabiam se teriam capacidade de checar um volume tão grande. Os checadores podem escolher participar ou não, e as regras valem apenas para aqueles que querem participar e cumprem requisitos de independência. São as checagens deles que as plataformas serão obrigadas e disseminar para todos expostos a desinformação. Quando falamos sobre desinformação, existe um problema inescapável: quem decide o que é verdadeiro e o que é falso? As opções são: manter o status quo, em que as plataformas estão decidindo; ter um Ministério da Verdade, em que o governo decide, algo que existe em vários regimes autocráticos; ou ter checadores independentes que vão arbitrar essas questões e serão responsabilizados perante o Judiciário e os outros checadores.

Se alguém discorda de uma checagem, pode recorrer ao Judiciário. Entre todas as opções –as plataformas, Ministério Da Verdade ou checadores independentes—, essa é a solução inteligente.

Há certa resistência em definir desinformação, porque se chegarem a um conceito muito amplo isso pode ser usado para cercear liberdade de imprensa, por exemplo. Como chegar a um consenso sobre o que é desinformação? A ideia de informação comprovadamente falsa ou enganosa é bem clara e acessível e é a única coisa que precisa estar na lei. Qualquer linguagem colocada em uma lei pode ser objeto de inúmeras interpretações, dependendo da situação. Esse é o papel do Judiciário –definir quais interpretações e qual jurisprudência são coerentes com o espírito da lei. Por exemplo: sátira é desinformação? Não, se for genuinamente sátira. Mas e se 99% das pessoas que veem não acham que é engraçado, não entendem que é uma piada e acreditam ser verdade? É uma zona cinzenta, difícil de legislar, mas que o Judiciário pode arbitrar.

Como o senhor vê as tentativas da União Europeia de legislar sobre o assunto? A UE havia proposto às plataformas uma autorregulação voluntária em temas como transparência e redução do número de contas inautênticas, mas isso foi um fracasso, na visão do próprio bloco. Agora, o Parlamento Europeu está propondo a distribuição de checagens independentes para pessoas que foram expostas a determinadas notícias falsas e enganosas. Esse tipo de regulamentação fracassa se não tiver instrumentos para garantir seu cumprimento, mas também se for severa demais.

No Brasil, emergiu uma “coalizão do não faça nada”, que une alguns defensores de liberdade de expressão, plataformas e extrema direita. E eles conseguiram tirar de projetos de lei algumas das soluções eficientes. Isso abriu caminho para o texto substitutivo do relator da proposta no Senado [o senador Angelo Coronel, do PSD-BA] que segue a velha abordagem severa.

Parte das plataformas e dos ativistas dizem que todos os países que tentaram implementar qualquer tipo de legislação contra fake news acabaram cerceando a liberdade de expressão e causando censura. Sim, alguns ativistas dizem que as primeiras versões do projeto na Câmara iam contra o Marco Civil da Internet [ao responsabilizarem as plataformas por conteúdo de terceiros], o que simplesmente não é verdade. Houve muita desinformação sobre essa lei contra desinformação.

Por quê? Há um medo compreensível no Brasil de abuso de poder por parte do governo. Mas esse medo está fazendo com que algumas pessoas tirem conclusões precipitadas. Essas soluções não representam ameaça à liberdade de expressão. Mas um grupo de pessoas se agarrou a essa percepção errada e entrou no mesmo time que os apoiadores de Bolsonaro, a extrema direita e as plataformas. Aliás, as plataformas estão felicíssimas de se aliar a esses ativistas.

As plataformas estão dispostas a fazer concessões? Diferentes plataformas têm posições diversas. No geral, elas têm tentado obstruir qualquer regulação no Brasil. Mas as plataformas já estão adotando algumas dessas medidas. Elas estão distribuindo checagens de conteúdo falso ou enganoso, só não estão mostrando para todo mundo que foi exposto a desinformação. E também estão eliminando contas inautênticas. Isso prova meu ponto –no momento estamos à mercê das plataformas para decidirem, baseados em interesses corporativos, políticos, financeiros, como regular.

Isso não é democrático, precisamos abrir essa caixa preta de como e por que as plataformas tomam suas decisões. Não quero demonizar as plataformas, há muita gente responsável trabalhando nessas empresas, mas não podemos subestimar o fato de que um homem, Mark Zuckerberg, controla a grande maioria do conteúdo que estamos vendo nas mídias sociais. Esse homem jantou há alguns dias com [o presidente dos EUA] Donald Trump e é constantemente assediado por alguns dos políticos mais poderosos e radicais do mundo. Temos uma empresa americana que, por meio de seus algoritmos e suas políticas, exporta para o resto do mundo um tipo de política e de engajamento político.


Ricken Patel, 43

Diretor-executivo da Avaaz, o canadense-britânico estudou filosofia, política e economia na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Tem mestrado em políticas públicas pela Universidade de Harvard (EUA)​ e experiências profissionais em Serra Leoa, Libéria, Sudão e Afeganistão. Foi nomeado como jovem líder global pelo Fórum Econômico Mundial e é considerado um líder global de protestos online pelo jornal The Guardian.

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