Denúncia de rede de espionagem de Macri é novela repetida na Argentina

Desde anos 1940, governos de diferentes matizes se valeram da prática para monitorar rivais e até apoiadores

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Buenos Aires

A denúncia de que, durante a gestão de Mauricio Macri (2015-2019), o serviço de inteligência argentino espionou mais de 400 políticos, jornalistas, juízes, membros de organizações sociais e até integrantes da Igreja Católica é novamente a novela da vez na Argentina.

A cada dia, novas gravações, fotos e documentos da AFI (Agência Federal de Inteligência) sobre diversos personagens do país emergem na imprensa local.

O repórter investigativo Hugo Alconada Mon, do jornal La Nación, por exemplo, descobriu que, não apenas todas as suas conversas telefônicas foram gravadas, como a casa de seus pais foi vigiada e fotografada, assim como havia um relatório sobre os trajetos feitos com seu carro.

O ex-presidente da Argentina Mauricio Macri durante entrevista coletiva em Buenos Aires
O ex-presidente da Argentina Mauricio Macri durante entrevista coletiva em Buenos Aires - Juan Mabromata - 16.mai.18/AFP

A ONG Barrios de Pie, que ajuda moradores de favelas, soube que, entre seus membros, havia agentes infiltrados que produziam registros sobre a atividade política dos outros participantes da organização.

Descobriu-se até que a AFI colocou microfones na prisão de Ezeiza, na qual cumpriam pena condenados por corrupção na gestão de Cristina Kirchner (2007-2015), como seu ex-vice-presidente, Amado Boudou.

Espionagem governamental, porém, está longe de ser uma novidade na Argentina. "É um flagelo da nossa democracia", diz Gerardo Young, autor de livros sobre o uso político dos serviços de inteligência do país.

"O que nasceu para servir interesses sensíveis do Estado virou instrumento de manipulação política e judicial para influenciar eleições, votações no Congresso, pressionar opositores e até para fins pessoais."

Young lembra que o criador da prática no país foi Juan Domingo Perón, que inaugurou a secretaria de inteligência, em 1946. A estrutura do órgão foi crescendo e chegou a ter 25 mil agentes infiltrados em jornais, sindicatos, partidos, organizações populares e igrejas, entre outros.

Durante a ditadura, foi muito usada pelos militares. Com Carlos Menem (1989-1999), o uso político do aparato cresceu demais, algo que seguiu ocorrendo com Néstor e Cristina Kirchner e, então, com Macri.

A AFI macrista não monitorava só opositores, mas alguns dos mais fiéis apoiadores, como o atual vice-chefe do governo de Buenos Aires, Diego Santilli, e a ex-governadora da Província María Eugenia Vidal.

O processo em andamento na Justiça aponta para Gustavo Arribas, então no comando da agência, como o principal responsável pela rede de espionagem.

Por ora, Macri, alvo da Procuradoria Federal, que abriu um processo contra o ex-presidente, ainda não foi chamado a depor, mas isso deve acontecer, de acordo com o juiz Federico Villena, porque a agência de inteligência responde de modo direto ao poder Executivo.

O jornalista Rolando Graña, um dos espionados no caso atual, conta que "o mecanismo sempre foi o mesmo". "Começa com uma informação que o presidente necessita. Ele encomenda o pedido à AFI, e a agência aciona juízes corruptos para validar as operações ilegais."

Nos anos 1990, durante a era Menem, não só juízes eram subornados —jornalistas também, por meio de envelopes entregues mensalmente a profissionais escolhidos pela secretaria de inteligência.

"Dentro havia uma quantia alta, que recebiam apenas para estarem no esquema. Eram acionados quando a agência precisava de informação ou quando queriam que escondessem alguma notícia", conta Young.

O promotor federal Federico Delgado, autor do livro "República da Impunidade", diz que "a vida pública da Argentina está fora do Estado de Direito". "Os serviços de inteligência são uma autopermissão que o Estado se dá para trabalhar à margem do próprio Estado, a serviço do indivíduo à frente do país."

Aqueles que assistiram à série "Nisman, o Promotor, a Presidente e o Espião", disponível na Netflix, viram o depoimento do principal espião produzido pelo que antes se chamava Side (Secretaria de Inteligência) e hoje leva o nome de AFI: Jaime Stiuso.

O agente chefiou o órgão entre 1972 e 2014. Por décadas, seu rosto nem sequer era conhecido, porque ele não aparecia em fotografias, ainda que fosse uma das pessoas mais poderosas da Argentina.

Stiuso deixou a Side pouco antes de Alberto Nisman acusar a então presidente Cristina Kirchner de obstruir a Justiça na investigação do atentado à Amia (Associação Mutual Israelita Argentina), em 1994.

O promotor morreu um dia antes de apresentar a acusação formal ao Congresso, e sua morte é até hoje um mistério. Naquela ocasião, Cristina retirou poderes da agência e a esvaziou em termos de estrutura e pessoal, mas o órgão continuou em atividade.

Entre os áudios revelados na apuração atual, há um de Alan Ruiz, funcionário da AFI, no qual relata como e por meio de que juízes os esquemas de espionagem eram montados. "Pedimos ao juiz X que invente um processo para colocar um carro estacionado no Instituto Patria [dirigido por Cristina]", por exemplo.

Sobre ações dentro de organizações sociais, Ruiz propõe "colocar gente dando oficinas, entregando coisas". "Assim os 'negros' [maneira depreciativa de chamar dirigentes de associações populares] passam a confiar neles, e podemos saber tudo o que ocorre."

O interesse em infiltrar agentes nesses locais é eleitoral. Os chamados "referentes" das favelas têm muita influência no voto de moradores das comunidades.

Em sessão extraordinária no Congresso, na semana passada, deputados pediram que as evidências entregues à Justiça sejam liberadas. O presidente Alberto Fernández defendeu que "chegou a hora de fechar os porões da política argentina".

Os porões da espionagem argentina parecem mais um buraco negro, que suga empresários, políticos, jornalistas, padres e juízes.

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