Dia #95 - Terça, 16 de junho. Cena: barceloneses curtem a última semana sem turistas, ocupando as ruas do centro para jogar bola e visitando lugares geralmente abarrotados como o Parc Güell, o museu Picasso e o mercado histórico da Boquería.
Geni é uma equatoriana de meia-idade muito simpática. Pelo menos na minha imaginação, porque tudo o que já vi de seu rosto são os olhos.
Estamos em Barcelona, é dia de chuva. O centro da cidade, usualmente pululando de turistas e demais passeantes, é quase silencioso nesta terça-feira, com o chap-chap ocasional dos sapatos sobre as calçadas molhadas.
São em sua maioria entregadores levando mercadorias para pequenos mercados, um ou outro morador da residência de pessoas com deficiência da esquina ou trabalhadores dos poucos bares e lojas abertos, as caras cansadas ou distraídas.
Hoje não há clientes à vista e, em muitos casos, sequer o vendedor do estabelecimento vizinho com quem trocar ideia.
Estamos em uma lojinha de bairro. Enquanto passa o espanador nos produtos com gestos quase etéreos, ela me pergunta: "E como foi a quarentena pra você?".
Eu, que francamente tô meio cansada de responder essa pergunta, me limitei a dizer: foi duro, mas também não foi, sabe? Sorrimos debaixo das máscaras.
Um dedo de prosa mais e fico sabendo que, enquanto vivi o confinamento no conforto do lar, Geni passou o seu no hospital. Dois meses inteiros.
Por sorte, não como paciente. Ela foi recrutada pela empresa de limpeza para a qual presta serviço, que por sua vez foi contratada para reforçar a manutenção de um dos maiores hospitais públicos da cidade durante a epidemia.
Ou mais ou menos sorte: "Eu tinha muito medo pela minha família", diz. "À minha volta havia gente muito doente, alguns tossiam e cuspiam sangue", lembra.
Segundo ela, estava no andar reservado aos pacientes que saíam das UTIs. Nessa situação, segundo o médico que entrevistei, há dois tipos de situações: os que já estão melhor —e os que não melhorarão.
"Havia mucha, mucha gente", lembra. "Houve um caso que me tocou muito, de uma senhora. Eu lhe perguntei: 'Como está, como se sente?'. E ela me disse: 'Eu estou melhor, mas não sei como estará meu marido, porque ele está na UTI'. Eu só pude responder: 'Tranquila, tudo irá bem'."
Soube o que passou? “Nunca mais a vi, foi transferida pra um desses hotéis de isolamento depois que se recuperou.”
Mãe de dois filhos, de 11 e 13 anos, Geni passou esses dois meses de trabalho no hospital isolada da família dentro da própria casa.
"Foi uma decisão nossa", conta, para além das recomendações da equipe da ONG Médicos Sem Fronteiras, que esteve no hospital instruindo as equipes sobre como proceder durante e após o trabalho.
"Eles nos ensinaram que o mais importante ao chegar em casa era nos desinfectar", lembra. "Cada dia, ao chegar em casa, eu guardava a roupa de rua numa sacola, tomava banho e me isolava em um quarto longe dos meus filhos e marido. Na hora de comer ou de ver tevê, eu sentava bem longe deles."
Ela me mostra fotos de seu uniforme de trabalho durante a pandemia. É igual ao dos médicos e dos enfermeiros: dupla máscara, plástico de proteção facial, touca, óculos, macacão, bata, plástico nos pés, luvas etc.
"Estava vestida de ir pra Lua", comenta, rindo. E agora, de volta à Terra, o que nos espera?, pergunto.
"Viver, toca viver", responde simplesmente. Com um amplo sorriso debaixo da máscara azul —ou será minha imaginação?
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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